São Paulo, quinta-feira, 27 de novembro de 1997
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Desvalorizações cambiais competitivas

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Começam a correr boatos da demissão de um alto funcionário do Banco Central, conhecido (injustamente) como responsável exclusivo pelo "pecado original" do Plano Real. Ainda que provavelmente infundados, os boatos me deixaram um pouco inquieto.
Coloque-se, caro leitor ou leitora, na posição dos colunistas semanais de economia. O que será de nós sem as declarações, digamos, pitorescas desse alto funcionário? Baixará, às vezes, uma atroz e inapelável falta de assunto.
Já nos invade uma funda nostalgia do tempo em que o assunto para o artigo semanal estava sempre garantido. Na pior das hipóteses, comentávamos, entre divertidos e horrorizados, as manifestações extravagantes do funcionário em questão.
Por exemplo, a inesquecível previsão de que 1997 seria "um ano monótono". Ou então, a imortal comparação entre a taxa de câmbio e o preço da banana. Foram tantas contribuições extraordinárias ao folclore econômico brasileiro! Ah, como dizia Nelson Rodrigues, subdesenvolvimento não se improvisa. É obra de séculos. É todo um paciente trabalho de gerações e gerações.
Mas não era disso que queria tratar hoje. Nas discussões sobre a política cambial brasileira, nem sempre se leva na devida conta um fato que tem implicações negativas para a já problemática posição externa do país: a onda de desvalorizações competitivas que atinge boa parte da economia internacional.
Era exatamente o que não precisava nos acontecer agora. Um grande número de moedas importantes, sobretudo na Europa e no leste da Ásia, está se desvalorizando substancialmente em relação ao dólar dos EUA. O real e as demais moedas ancoradas ou referenciadas ao dólar, muitas delas já claramente sobrevalorizadas, vêm sofrendo valorização adicional no passado recente.
Para os EUA, a alta internacional do dólar não constitui problema tão grave. Pode até ser interessante sob certos pontos de vista. Por exemplo: ajuda um pouco a conter as pressões inflacionárias em uma economia bastante aquecida, que apresenta níveis relativamente baixos de desemprego.
Mas, para países como o Brasil, a valorização do dólar frente a terceiras moedas é uma dor de cabeça adicional. Vem sendo mais do que suficiente para anular o esforço de correção gradual da taxa real de câmbio com o dólar, iniciado tardiamente em 1997.
Peço a paciência do leitor para apresentar alguns números. Nos 12 meses terminados em outubro de 1997, o real se desvalorizou, em termos nominais, 7% em relação ao dólar. Em termos reais, considerando índices de preços ao consumidor, a desvalorização foi de 5%. Nesse ritmo, a taxa de câmbio poderia chegar a uma posição aceitável ao final de três ou quatro anos.
Infelizmente, outras moedas estão perturbando os planos brasileiros de correção gradual. Vejamos os dados em 12 meses até fins de outubro último, sempre deflacionados por índices de preços ao consumidor.
Comecemos pela Europa. Num conjunto de 17 países, que inclui as 12 maiores economias da União Européia, a desvalorização real média frente ao dólar foi de 13% nesse período. O marco alemão e o franco francês desvalorizaram-se 16%; a lira italiana, 13%. Só dois países registraram valorização real em relação ao dólar: o Reino Unido (3%) e a Rússia (2%). Nos outros 12 países, a desvalorização variou entre um mínimo de 9%, na Hungria, e um máximo de 17%, na Áustria e em Portugal.
Como se sabe, no leste da Ásia as desvalorizações reais têm sido, em diversos casos, ainda mais profundas. Nos últimos 12 meses até outubro, a desvalorização na Tailândia e na Indonésia foi de 46% em relação ao dólar; na Malásia, 34%; nas Filipinas, 29%; em Formosa, 15%; na Coréia do sul, 14%; no Japão, 6%. Em novembro, a maioria dessas moedas, especialmente as do Japão e da Coréia, vêm caindo ainda mais. No leste da Ásia, as principais exceções à onda de desvalorizações são a China, com moeda estável em termos reais, e Hong Kong, que registra valorização real de 3% em face do dólar nos 12 meses até outubro de 1997.
Num conjunto de 39 países, que inclui as principais economias do mundo desenvolvido e em desenvolvimento, 25 registraram desvalorizações mais acentuadas do que a do real nesse período. Um total de 22 países tiveram depreciações reais superiores a 10% em relação ao dólar.
Em consequência, as empresas brasileiras perdem competitividade não só nos mercados domésticos dos países que estão desvalorizando, mas também relativamente às empresas desses países no mercado brasileiro e em terceiros mercados.
O que fazer? Alega-se que a aceleração das desvalorizações do real não é recomendável porque "provocaria inflação". O brasilianista Albert Fishlow, que passou por aqui na semana passada, emprestou seu nome a essa proposição.
Há vários motivos para duvidar disso. A falta de espaço só me permite mencionar dois deles, relacionados aos números acima apresentados.
Primeiro, a onda de desvalorizações cambiais tende a reduzir os preços dos bens e serviços comerciáveis, medidos em dólares, o que compensa, pelo menos em parte, a pressão sobre os preços em reais resultante de uma eventual aceleração das desvalorizações no Brasil.
Segundo, nos 22 países que desvalorizaram acima de 10% em termos reais, nada menos do que 13 experimentaram diminuição da inflação nos últimos 12 meses. Na maioria dos demais, a taxa de inflação permaneceu estável ou aumentou muito pouco.
Por esses e outros motivos, caberia questionar o argumento habitual de que o controle da inflação é a principal razão pela qual o governo brasileiro tanto reluta em modificar a política cambial. A idéia de que uma desvalorização mais acentuada provocaria inevitavelmente forte impacto sobre a inflação, ou até a volta da inflação alta, é mais um mito que procuram incutir, à força de repetição, na cabeça do brasileiro.

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