São Paulo, quinta-feira, 27 de novembro de 1997
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De roupa preta

OTAVIO FRIAS FILHO

Era terrível e sublime, de alguma forma, a imagem publicada na primeira página de ontem: mãe, filha, neto, toda uma família fruto de um ato de violência sexual foi levada à tribuna da Câmara por um sacerdote católico. Na foto, enquanto ele discursa, as duas mulheres se abraçam e o garotinho observa, atônito, o grande teatro dos adultos.
Muita gente acha que o imobilismo da Igreja Católica em questões de moral não é imobilismo, mas coerência. Carlos Heitor Cony, com o talento de sempre, escreveu nesta mesma página que a Igreja, como instituição multissecular que é, não pode mudar de opinião a cada cem anos. Ela é o que sempre foi, ninguém é obrigado a aderir.
No entanto, o raciocínio talvez devesse ser tomado mais literária que literalmente; Cony pode ter escrito "ad argumentum", como ele mesmo diria. Num período tão largo de tempo a Igreja mudou e mudou muitas vezes. Houve diferentes fases e épocas, mas na maior parte delas a posição da hierarquia foi bastante "liberal" em matéria de costumes.
Não por acaso, isso ocorreu sempre que a existência da Igreja esteve intimamente entrelaçada com a vida real das pessoas. Oficialmente, a doutrina poderia ser mais ou menos beata, mas o adultério masculino, por exemplo, era tão praticado quanto não o era o celibato. Os prelados eram banqueiros e generais; os padres, homens comuns.
Foi só quando a Igreja foi expulsa da política pelas revoluções dos séculos 18 e 19 que ela se exilou também da vida diária, segregada nas sacristias, cada vez mais impregnada de uma moralidade triste e restritiva. Quando dizemos que as posições do Vaticano são "medievais", o que estamos dizendo é que elas são vitorianas.
Feitas todas essas ressalvas, existe coerência teológica na posição antiaborto da Igreja. Ela decorre do pressuposto de que Deus tem um plano para o mundo, plano obscuro exceto pela certeza de que ele favorece a vida. Shakespeare ou Francisco de Assis (ou o garoto da foto) não existiriam se suas mães houvessem interrompido a gravidez.
Nem é preciso alinhar os argumentos opostos, mais congruentes, aliás, com o modo pelo qual a nossa época vê as coisas. Até porque nesse tema os argumentos têm pouca força de persuasão. As situações extremas, limítrofes entre a vida, a dor e a morte, escapam à razão moral; nelas, não julguemos para não sermos julgados.

Já que mencionamos Shakespeare e o século 19: de onde veio essa mania de juntar os dois? Neste momento estão sendo exibidos, em São Paulo, pelo menos três espetáculos ("Noite de Reis", no cinema, "Hamlet" no cinema e no teatro), todos interessantes, mas ambientados todos na época vitoriana. Não deve ser coincidência.
Talvez esse período se associe à pompa que atribuímos ao grande clássico. Shakespeare acontece num tempo que ele mesmo criou, meio renascentista, meio mágico. Nada contra a liberdade para reinterpretar. Mas a alegria, a barbárie, a cor das peças não combina com essa época em que, segundo Baudelaire, a humanidade decidiu vestir preto.

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