São Paulo, domingo, 30 de novembro de 1997
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Trombetas de Jericó

TEIXEIRA COELHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Mudar o estilo de pensar é a única coisa que conta naquilo que fazemos." Quando redigiu essa proposição, Ludwig Wittgenstein não restringiu o alcance do "nós" nela embutido, o que significa que vale para todos e não apenas para os filósofos. No entanto, sem dúvida, na idéia de Wittgenstein, ela deveria valer mais ainda para os filósofos -e para os sociólogos.
O sociólogo Robert Kurz, porém, parece rejeitar a exortação: ele pensa sempre o mesmo, e no mesmo estilo de pensar. E pensa sempre não apenas o seu próprio mesmo, mas o mesmo de uma sociologia envelhecida, que não mais consegue dialogar com o contemporâneo (o qual provavelmente ela nem enxerga) e que se vê forçada a soar as trombetas de Jericó na tentativa de encontrar alguma ressonância.
Prova disso é seu texto publicado no Mais! de 23/11, sob o título "A estetização da crise", somatória de lugares comuns (cf. o já insuportável "objetos do desejo"), catastrofismos (habituais em suas páginas), vaguidades conceituais ("a indiferença da forma social"), preconceitos (os outros limitam-se a pensar "consumo, logo sou"), tautologias surpreendentes num intelectual de renome ("a aura artificial e pseudo-religiosa dos objetos da produção e do consumo é apenas simulada": que outra coisa poderia ser uma aura dita artificial?) e fórmulas lapidares não demonstradas que se pretendem verdades evidentes (como a que abre o artigo: "O sistema da moderna economia de mercado tende a dissolver todo conteúdo em forma"; aquilo mesmo que deveria ser atestado ao longo da argumentação é astutamente apresentado como ponto de partida incontroverso).
O que Robert Kurz ainda pensa é o contemporâneo (para ele, sinônimo de capitalismo) como degradação e simulacro, idéia esposada por uma sociologia para a qual a noção de decadência como valor negativo é o único motor epistemológico. Tudo se deteriora, tudo apodrece, e o dia do juízo (o "terrível final" com que conclui seu texto) é inevitável e está próximo.
Impossível deixar de pensar nas charges, recorrentes, nas quais um personagem barbudo e de camisola carrega um cartaz onde se lê: "Arrependam-se! O juízo final está próximo!". Apocalipse por apocalipse, prefiro o do outro Kurz -ainda que este tenha um "t" a mais-, o de "Coração das Trevas", de Conrad, que Coppola transformou em filme. É curioso como o papel de profeta do apocalipse possa ser encenado tanto por um pensador dito de esquerda, como Robert Kurz, como por alguém que não raramente é chamado de direitista ou até de fascista, como Jean Baudrillard. Talvez seja porque o catastrofismo vende.
Desta vez, Kurz volta-se contra a forma, em nome do conteúdo, e contra o design -em todo caso, contra o design "automatizado": mas como ele nunca faz esse design aterrissar, dando-lhe um nome concreto ou designando-lhe o autor ou a escola, devemos entender que é contra todo o design. Em suma, sua tese (não demonstrada) é que no sistema econômico de mercado os objetos são esvaziados de todo conteúdo (perderam toda "qualidade sensível") e submergem ao peso de uma forma vazia e ilusória; que os "objetos de desejo transformam-se assim em peças de culto", que o único valor existencial atual é o consumo ("consumo, logo sou"), que o irreal devora tudo como enorme buraco negro e que as pessoas são paródias de si mesmas, autores e vítimas complacentes de uma "auto-encenação" constante.
Sua argumentação tem um primeiro e enorme pé de barro: quando se diz que uma coisa "não é mais" é porque, um dia, ela foi. E, quando se insiste na idéia de "perda" (e esta palavra, com suas variantes, é uma pedra de toque do artigo), é porque um dia prevaleceu uma totalidade (uma integralidade) da qual caiu uma parte (o mito da queda).
Quando foi esse dia? Quando os objetos tiveram uma "qualidade sensível"? Quando os conteúdos não se dissolviam em forma? Quando as pessoas não encenavam a si mesmas? Kurz não diz. Essas diferentes perguntas admitem respostas diversas, mas todas conterão a mesma palavra: nunca. As perguntas sugeridas pelo texto de Kurz seriam mais aceitáveis se ele tivesse criado as condições para que fossem formuladas de modo um pouco mais relativizado. Por exemplo, quais tipos de objetos tiveram, em que tipo de civilização, e quando, mais "qualidade sensível" do que hoje? Quais conteúdos, no passado, se dissolviam menos em forma e quando? Em que época as pessoas (quais pessoas?) se encenaram menos do que hoje? Mas o texto de Kurz é totalizante, tende para o totalitário e não admite esse tipo de relativização. Em resumo, para ele, tudo se degradou. Assim como para Platão, a idade de ouro se localiza num passado mítico e nada pode ser feito para recuperá-la (salvo, talvez, sabendo-se das opções ideológicas de Kurz, o recurso a um rearranjo materialista-histórico da sociedade, cujas modalidade e possibilidade ele, porém, nunca especifica).
O texto de Kurz contém, por certo, diferentes passagens com as quais se é obrigado a concordar. Por exemplo, a afirmação de que a "estética da mercadoria não deve ser confundida com a estética das obras de arte" ou uma outra que fala dos clichês da publicidade ("a mulher bela e confiante", "o homem forte e bem-sucedido"). Mas estas proposições são, elas mesmas, outros tantos clichês, já bem pouco significantes no interior de uma sociologia desgastada. Mais frequentes são as passagens com as quais é impossível concordar, por exemplo a que apresenta a Love Parade (passeata de jovens que há alguns anos se repete em Berlim e nas quais se defende não apenas as formas alternativas do sexo, ao contrário do que Kurz sugere, mas também uma nova modalidade de vida em geral) como uma paródia das antigas passeatas de cunho político.
Kurz parece não conseguir admitir que os paradigmas políticos tradicionais, encerrados nas ideologias dos partidos, se desbastaram para os jovens. Mais: engana-se quando diz que os guardiões conservadores da moral berlinense irritam-se em vão com a Love Parade, porque, segundo ele, "esses jovens não são mais sexualizados do que bonecos de inflar" e porque "a atividade realmente erótica dos indivíduos pós-modernos caiu abaixo do nível da era vitoriana". Parece que Kurz é míope diante das práticas sexuais multiformes que continuam se desdobrando mesmo sob a Aids. Se quiser conhecer um sexo que os bonecos de inflar não fazem, basta vir a São Paulo e informar-se sobre quem e quantos são os clientes dos travestis, quem prefere o quê em certos locais (que existem também em Berlim) e por que a eroticidade dos jovens pós-modernos não caiu abaixo do nível vitoriano (e desde quando a atividade erótica era pequena na era vitoriana? Outro clichê desnecessário).
Na raiz do destampatório de Kurz está a velha opção da sociologia conservadora (católica, comunista ou nazista) pelo conteúdo, em detrimento da forma. Embora numa breve passagem Kurz admita que a forma não pode prescindir do conteúdo (o que deveria significar que conteúdo algum prescinde de uma forma -mas isto ele não reconhece de público), insiste na noção de que a forma na contemporaneidade se separou do conteúdo e, sem peso, é um simulacro gerador de simulacros. Kurz é um "formófobo", o que fica ainda mais evidente nos traços pejorativos que atribui a um pós-modernismo por ele igualmente não identificado no interior de um texto, aliás, todo ele abstrato e universalizante (e que assim se quer).
Os tempos contemporâneos são claramente marcados por um formismo cuja positividade Kurz se recusa a ver. Ele até intui implicitamente quais são os lugares de manifestação desse "formismo", que de fato está no corpo encenado dos jovens na Love Parade, nas partes do corpo submetidas ao "piercing", nas roupas (no "look"), nos filmes de Greenaway e de Godard, nos espetáculos de rock (o século 19 também não foi palco de uma "cultura do espetáculo"? E o 18? A cultura da Revolução Francesa foi menos espetacular do que outras que se seguiram? A tese da sociedade do espetáculo que Kurz cita e convalida não é, na verdade, outro clichê sociológico natimorto?) e, mesmo, no... design. Está evidente, porém, que essa tendência só surge, a seus olhos, sob um aspecto negativo. Aquilo que para o sociólogo alemão aparece apenas como degradação -ou pós-cultura- pode ser, de fato, uma cultura diferente, barroquizante (uma cultura novamente barroquizante), cujos efeitos e natureza estarão talvez longe de ser todos entusiasmantes, mas que não se limitam às negatividades em que Kurz prefere apostar (ou que ele parece querer ver existir, que ele parece desejar).
Difícil deixar de ver, sob esse texto, um sociólogo que é, ele mesmo e para usar sua expressão, um guardião conservador (e irritado) de uma moral puritana que nunca existiu; um substancialista em combate anacrônico, pouco engenhoso e nobre, com a "falsidade", o "simulacro", o "verdadeiro"; um materialista que parece não acreditar na proposição leninista (formulada exatamente para contornar o impasse entre a essência e a aparência) segundo a qual a aparência é essencial e a essência aparece. A posição não-construtiva e lamuriante de Kurz, que incorre na facilidade amplamente equivocada de taxar de fascismo aquilo com que não concorda e não entende, já cansou.
Detalhe irônico: a matéria de Kurz vinha ilustrada com uma obra do designer Sottsass. Provavelmente ele não a sugeriu, a indicação quase certamente partiu da Redação do jornal.
Quem quiser pode dizer que Sottsass é um vendido ao capitalismo, já que seus clientes são os executivos da Park Avenue ou de Wall Street, os únicos a poderem pagar seus preços. Mas nunca que ele seja produtor de um "design autonomizado da imagem" que "se substitui ao prazer com objetos reais".
Esse comentário visual irônico (acidental? intencional?) ao texto de Kurz atenua a carga injustamente feita pelo sociólogo contra o design e os designers, inúmeros deles de esquerda (que se pense na Bauhaus), que entenderam que a vida tem também um lado lúdico, que souberam que o homem procura sempre o belo e que, portanto, deviam eles, designers, preocupar-se igualmente com a estética do mundo, não só com a política do mundo, ao mesmo tempo em que nem por isso compactuavam com os crimes dos agentes da economia de mercado -não mais, em todo caso, do que Kurz escrevendo (remuneradamente, suponho) para um jornal produzido dentro das regras da economia de mercado.

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