São Paulo, domingo, 30 de novembro de 1997
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Páginas de vida, vida de páginas

JOSÉ PAULO PAES
ESPECIAL PARA A FOLHA

A publicação de "Uma Vida entre Livros - Reencontros com o Tempo", de José Mindlin, constitui-se de certo modo num ato de desagravo e edificação para os dias de hoje. Dias em que, deslumbrada pelos prodígios da tecnologia da informação, a credulidade dos futurólogos decreta a cada passo a obsolescência do livro como instrumento básico de informação e deleite intelectual. Com maldisfarçado júbilo, sustentam eles que a substituição do livro por algum tipo de engenhoca eletrônica capaz de suprir-lhe com vantagem todas as funções é só uma questão de tempo, e não muito.
Duvido que quem se dê ao trabalho de ler com alguma empatia "Uma Vida entre Livros" possa continuar a dar um mínimo de credibilidade a balelas desse tipo. Aliás, a própria maneira por que Mindlin nos conta a sua autobiografia de bibliófilo induz, por si só, à leitura empática. O longo convívio dele com a melhor literatura, de par com a sua passagem pelo jornalismo profissional, cedo lhe ensinou os méritos da simplicidade e da direitura no trato da linguagem. Graças a elas é que "Uma Vida entre Livros" conquista sem esforço a atenção do leitor e a enleia no fio da narrativa que, sem ser de ficção, tem o mérito de interessar-nos a absorver-nos tanto quanto se o fosse. Ajuda a incrementar tal interesse o esmero da edição da Edusp/Companhia das Letras, com projeto gráfico de Diana Mindlin.
Para dar a justa medida do lugar que a paixão pelo livro ocupa numa vida que, profissionalmente, esteve voltada para outros campos de atividade, Mindlin começa por falar dos seus dias de estudante, quando dividia o estudo do direito com um emprego de jornalista no "Estadão". Uma vez diplomado, deixou a imprensa para militar na advocacia, isso durante cerca de 15 anos. A partir de 1950, tornou-se empresário de uma importante indústria do setor automotivo. A isso faz ele referência para mostrar -são suas próprias palavras- "a improcedência da impressão, bastante generalizada, de que interesses intelectuais são incompatíveis com a atividade empresarial".
Como empresário cujos interesses intelectuais sempre se voltaram para as boas causas, Mindlin tem sido uma presença marcante na vida cultural de São Paulo. Sua atividade nesse domínio é tanto mais profícua quanto sempre se fez -para citar o título de um livro de Augusto Meyer- à sombra da estante. Conforme está dito a certa altura de sua autobiografia, a biblioteca que ele vem "formando há quase 70 anos" representa um "interesse central de vida". Diferentemente de tantos colecionadores que, ciosos tão-só do valor de raridade dos livros colecionados, mal se dão ao trabalho de os ler, ele faz questão de sublinhar: "Durante toda a minha vida, a leitura sempre foi o fulcro da biblioteca, e sua razão ser".
À história da formação dessa esplêndida biblioteca em que a qualidade sempre preponderou sobre a quantidade, dedica o autor as melhores páginas de "Uma Vida entre Livros". A narrativa de suas aventuras de bibliófilo chega a invadir por vezes o terreno da ficção.
É o caso, por exemplo, da caça a um dos três únicos exemplares subsistentes da primeira edição de "O Guarani", de Alencar, caça que envolveu viagens à Europa e a quase perda dessa preciosidade num avião da Air France. Ou então o caso da edição aldina dos sonetos e canções de Petrarca com o texto de dois sonetos contra a corte de Roma obliterados a nanquim pela censura da época. O tempo se encarregou de desbotar o nanquim censório e de restituir os sonetos à luz do dia e à curiosidade do leitor.
Mindlin mandou fotos dessas páginas censuradas a um professor universitário tcheco com quem se encontrara em Praga, por volta de 1984, e que se queixara a ele da opressiva tutela soviética. O professor as mostrou às suas filhas como um exemplo de esperança nas voltas que o mundo dá. E uma dessas voltas foi fazer do professor em questão, cujo nome era Václav Havel, o primeiro presidente da nova República Tcheca.
Há outros episódios não menos interessantes de "Uma Vida entre Livros", juntamente com informações pitorescas e doutas sobre o mundo dos incunábulos, edições raras e manuscritos de valor histórico. Esse mundo exclusivista está muito bem representado na biblioteca de Mindlin. Particularmente no setor da chamada Brasiliana, de que ela é uma das melhores do Brasil, a ponto de possuir um dos mais antigos documentos sobre o Rio de Janeiro. "Anterior ao mais antigo que a Biblioteca Nacional possui (quando se tem um livro ou documento que a Biblioteca Nacional não tem, é a glória!)", não se esquece de sublinhar, com compreensível ufania, o bibliófilo.
O acesso à glória que é uma biblioteca assim não está porém restrito ao seu organizador e dono. Ele a abre generosamente a pesquisadores necessitados de consultar-lhe o acervo, inclusive de originais e provas tipográficas corrigidas de próprio punho por autores como Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Erico Verissimo e outros. Graças a tal generosidade, eu próprio a pude consultar quando, para um artigo sobre Ossian, o falso bardo gaélico que agitou a Europa em fins do século 18, me propus a traduzir alguns dos seus poemas. Baldadamente procurei uma edição deles nas livrarias locais; nem sequer a encontrei na Biblioteca Mário de Andrade ou na da Universidade de São Paulo. Felizmente, para socorrer-me nesse transe, havia na biblioteca de Mindlin uma edição escocesa, de 1926, dos "The Poems of Ossian".
Não vou alongar-me mais acerca de "Uma Vida entre Livros - Reencontros com o Tempo" para não roubar o leitor do prazer de descobrir por si próprio o quanto de deleitoso tem a oferecer-lhe. Contento-me em transcrever -fecho condizente com as palavras por que comecei- o que ali está dito acerca do livro diante das novas tecnologias da informação: "As novas tecnologias vão se tornando insubstituíveis para o acesso e a difusão da informação, mas a absorção duradoura do texto continuará a depender do livro, cujo formato poderá variar, mas não deixará de ser livro. E o prazer que o contato físico com o livro proporciona, a meu ver, é insubstituível".
Daí não estranhar que a autobiografia de Mindlin conclua por estas palavras: "Num mundo em que o livro deixasse de existir, eu não gostaria de viver".

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