São Paulo, quarta-feira, 3 de dezembro de 1997
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Um pacote ainda inconsistente

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS

A crise do Real transcende as forças do governo. Embora este tenha uma parcela de culpa, por ter deixado os déficits público, das contas externas e da balança comercial chegarem ao ponto em que chegaram, sua origem é asiática e tem como principais geradores os US$ 13 trilhões de capital especulativo que circulam diariamente pelo mundo, em busca de maior rentabilidade, dentro de riscos calculados.
A seriedade dos países desenvolvidos e dos organismos internacionais no enfrentamento da crise, se não eliminou, amainou a turbulência -que poderá, porém, retornar a qualquer momento.
No bojo da crise, por serem as contas públicas brasileiras sofríveis e a carga tributária insuportável para um país que não presta serviços públicos à sociedade (33% sobre o PIB, contra 20% ou menos dos países emergentes), os investidores externos se assustaram.
Isso obrigou o governo, que passara três anos sem buscar seriamente as reformas essenciais, a tomar medidas coerentes, anunciando a elevação dos juros -para mostrar que não pretendia desvalorizar o real- e sugerindo um pacote de R$ 20 bilhões em corte de despesas e aumento de receitas, na busca da redução de seu déficit público.
Se, do ponto de vista da ação imediata, o efeito psicológico foi positivo, a análise mais pormenorizada do pacote demonstra a sensível inconsistência das receitas pretendidas, inclusive quanto à obtenção dos R$ 20 bilhões.
É de lembrar que o governo federal, com fantástica inoportunidade, rolou a dívida do Estado de São Paulo em torno de R$ 60 bilhões -ou seja, três PIBs do Uruguai e seis PIBs paraguaios-, perdendo autoridade para exigir sacrifícios dos Estados do Norte e do Nordeste, que vêem seus incentivos fiscais -alguns intocáveis, pois de origem constitucional- serem afetados, embora representem valores incomensuravelmente menores que a rolagem da dívida paulista (apesar de o governo ter recuado quanto a alguns deles).
Reconheço um admirável trabalho do governo Mário Covas no saneamento das finanças do Estado. O momento para a rolagem, porém, não poderia ser pior, principalmente levando em consideração que governador e presidente pertencem ao mesmo partido e que essa rolagem torna viável a candidatura do correto governador à reeleição.
À evidência, o Congresso não ficará indiferente a esse tratamento diferencial; mormente quando se verifica, por exemplo, que o Amazonas, tendo zerado seu déficit público, está na iminência de perder as garantias da Zona Franca de Manaus por medida provisória, apesar de ter incentivos assegurados na Constituição até 2013 (art. 40 da ADCT). O recuo político do Planalto, anunciado pelos jornais, deixou, todavia, nuvens de incerteza para o futuro.
No que concerne à carga tributária, o efeito é devastador. O "custo Brasil" piorará fantasticamente, com o aumento de impostos diretos e indiretos. Com carga de tributos igual à dos EUA (33% ou mais) e serviços públicos semelhantes aos de Uganda, o governo gerará maiores ônus para as empresas e menos recursos para o cidadão.
Tal situação sinaliza que é melhor investir na Argentina (carga de 20%), no Uruguai e no Paraguai (carga menor que 20%), pois o mercado do Brasil está assegurado para esses países, sem tarifas aduaneiras. Ou seja, a elevação do "custo Brasil" demonstra que é preferível ter o mercado brasileiro, graças ao Mercosul, e investir em países em que o "custo Argentina", o "custo Uruguai" e o "custo Paraguai" são menores.
O Brasil, em 93, tinha saldo positivo de US$ 2 bilhões na balança comercial com o Mercosul. Deve fechar 97 com saldo negativo de US$ 3 bilhões, que, certamente, será maior em 98.
Por outro lado, o competente secretário Everardo Maciel, que sempre manteve um diálogo adequado e sério com os contribuintes, tomado de inexplicável fúria impositiva -sem precedentes na história brasileira-, pretende tudo tributar, inclusive entidades imunes pela Constituição, o que levará a tornar a saúde e a educação piores no Brasil.
Na verdade, por não conseguir fiscalizar as "falsas entidades", o governo pretende atingir todas. Com isso, destruirá os setores privados de saúde e educação para igualá-los ao péssimo nível do serviço público nessas áreas.
Apesar de o país oferecer 33% de tributos ao Estado, esses US$ 250 bilhões entregues aos governos federativos servem apenas para a manutenção da estrutura do poder, e não para prestar serviços públicos, que serão de qualidade ainda pior depois do pacote.
Por fim, o governo recua na redução da máquina administrativa e dos servidores inúteis e não mexe nas contribuições -feitas com recursos públicos- para as aposentadorias elevadíssimas dos fundos de pensões públicos. Assim, a aposentadoria oficial continuará a massacrar o povo com seu peso de privilégios e vantagens.
Estou convencido de que o país precisava de um pacote. A redução da carga tributária e do "custo Brasil" poderia, entretanto, sinalizar mais positivamente para investidores estrangeiros que seu aumento, já que ela não geraria mais recessão, mais desemprego e mais perda de arrecadação, por força da redução das atividades econômicas.
A sabedoria oriental ensina que, se faltar água no deserto, é melhor o viajante dá-la ao camelo que tomá-la. O camelo pode chegar a um oásis e salvar o viajante. Se este tomar a água, o camelo morrerá primeiro, e ele, depois.
Infelizmente, o governo resolveu tirar a água do camelo que o carrega -a sociedade- apenas para saciar a sede do viajante enquistado no poder. Certamente, com tal visão pequena, nunca chegará a nenhum oásis de salvação.

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