São Paulo, quarta-feira, 3 de dezembro de 1997
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O fim de um mito

RICARDO SEITENFUS

Encerra-se em Londres amanhã a primeira conferência internacional sobre o destino do ouro roubado pelos nazistas e "lavado" pelos países neutros na Segunda Guerra. O tema, explosivo e doloroso, reúne 41 países. Sobressai o papel desempenhado pela Suíça.
Para o presidente do congresso judeu mundial, Edgar Bronfman, 85% do ouro nazista foi "lavado" na Suíça; já a comissão de historiadores suíços presidida por Jean-François Bergier indica 76%. Em qualquer hipótese, o triplo do que até então era cogitado.
As pressões externas sobre a confederação helvética estão à altura das recriminações. Contudo é na própria Suíça que um intenso debate se desenrola sobre os tormentosos anos 1930-40.
A irada resposta do embaixador suíço no Brasil, Oscar Knapp (Folha, 31/10), a meu artigo sobre os fundamentais avanços da historiografia européia da Segunda Guerra, insólita reação de um servidor do Estado, é uma vã tentativa de camuflar um drama que vem a público com 50 anos de atraso.
A imprensa faz eco ao trabalho de eminentes historiadores, como Jean-Claude Favez, ex-reitor da Universidade de Genebra, que, no livro "Uma Missão Impossível?", mostra que instituições de reconhecida respeitabilidade, como o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, não cumpriram sua função na Segunda Guerra. Intelectuais combativos, como Jean Ziegler, deputado socialista, indicam que, sem a colaboração suíça, o conflito teria conhecido seu epílogo em 1943.
O grande escritor suíço de língua alemã Adolf Muschg confessa que, "se Auschwitz tivesse se transformado num lugar da nossa história, quando soubemos quantos homens havíamos mandado para a morte teríamos assumido mais rapidamente o horror que praticamos". Os trabalhos de Frédéric Gonseth e Frank Garbely, Daniel Monnat, Werner Rings e Claude Mossé provam que intelectuais e opinião pública suíços exigem essa busca da verdade.
A Sociedade Suíça dos Escritores reconheceu ter auxiliado os serviços de repressão para impedir o asilo de escritores alemães. Em 1937, agiu contra Max Hochdorf e, em 1939, contra o historiador Golo Mann: "Seria certamente nefasto que antigos cidadãos alemães prosseguissem seu combate contra o 3º Reich a partir da Suíça".
Se a justiça não for mais possível, ao menos o debate assegura o direito à memória. A humanidade não pode ser tolhida da mais completa consciência do cataclismo que alcançou todos os continentes e ocasionou dezenas de milhões de mortes. Hoje, há um recrudescimento neonazista na Europa. O combate contra imigrantes e estrangeiros em geral fornece o conteúdo ideológico dos partidos de extrema-direita.
Alguns suíços insistem em divulgar a visão mítica da ação de um pequeno país no turbilhão daquele difícil período. O embaixador suíço no Brasil é, unicamente, porta-voz desse grupo: até a Fundação Genebra, ligada aos bancos locais, defende que a Associação dos Banqueiros Suíços e o governo helvético apresentem desculpas pelo ocorrido. Um dos mais importantes bancos do país, a União de Bancos Suíços, acaba de seguir esse conselho.
A manifestação agressiva de uma anacrônica "Suíça oficial" contrasta com a posição da França, cujo presidente reconheceu a "colaboração cúmplice, às vezes com zelo, com a Alemanha nazista" no regime de Vichy. No entanto, para o embaixador, é historiador quem repete seus refrões -felizmente, já revisados por uma história bem menos comprometida do que ele.
Quando eu e outros colegas, em pleno regime militar, divulgamos nosso trabalho sobre o papel do Estado brasileiro na Segunda Guerra, o governo não teve reação alguma. O Brasil demonstrou, apesar de sua juventude, maturidade e compreensão sobre o que estava em jogo.
A Suíça, de longa e extraordinária experiência democrática, merecia uma atitude diversa de parte de seu representante. Mesmo que ele não siga o exemplo brasileiro, deveria conhecer um dito popular do nosso país: "Quem diz a verdade não merece castigo".

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