São Paulo, sábado, 6 de dezembro de 1997
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O olho do furacão

RUBENS RICUPERO

No tempo em que eu devorava os livros de Conrad, uma de minhas novelas favoritas era "Typhoon". A história do insosso, mas sólido capitão MacWhirr, posto à prova pelo mais aterrador dos tufões do mar da China, é um prodígio de irônica verdade. Quando todos, inclusive os colaboradores mais inteligentes e interessantes do que ele, entram em pânico diante da imensidade da catástrofe que se abate sobre o navio, só o fleumático capitão não perde a cabeça. Como disse Conrad, ele era o homem certo para a situação, pois tinha uma "inteligência excessivamente simples para ser desconcertado por qualquer coisa no mundo a não ser conversa fiada".
Talvez se precise de alguém como MacWhirr, de nervos impassíveis e total falta de imaginação, para lidar com a crise asiática, que lembra a trama de "Typhoon" em mais de um ponto. Dentre eles, a decisão dos armadores, antes da fatídica viagem, de adotar por conveniência a bandeira do Sião, como era então conhecida a Tailândia. O que provoca a indiferença do comandante, para grande indignação do imediato, que achava de mau agouro ostentar na bandeira "um ridículo elefante de Arca de Noé".
Para continuar com a imagem do tufão, seria bom saber se a conclusão do pacote para a Coréia significa que atingimos o olho do ciclone e, a partir de agora, as coisas tendem a se amenizar. É melhor que assim seja, pois os recursos do FMI estão esticados a tal ponto que não vai sobrar muito para quem estiver no fim da fila, particularmente se for país de tamanho família como o nosso. De fato, só nos últimos meses, o fundo teve de coordenar pacotes de US$ 23 bilhões para a Indonésia, de US$ 17 bilhões para a Tailândia e agora de US$ 57 bilhões para a Coréia. Somando as contribuições do fundo em cada pacote, restam ao FMI cerca de US$ 30 bilhões em recursos líquidos, o que dá para o gasto, mas não será bastante se a crise teimar em se alastrar.
É exatamente aí que reside a dificuldade: como saber se a tempestade vai acabar logo? Ninguém, é claro, pode dar resposta a essa questão, mas existem três países, três situações críticas que convêm seguir de perto, pois delas depende o futuro econômico do mundo e o nosso nos próximos meses: a China, o Japão e os EUA.
A China, em primeiro lugar, porque embora não se fale muito nisso, uma das causas da crise asiática foi a desvalorização, em 1994, da moeda chinesa em um terço. Em 1981, US$ 1 valia 1,5 yuan; em 1992, esse valor tinha chegado a 5,75 e saltou, dois anos depois, para 8,62, baixando depois um pouco para 8,32. Essa desvalorização afetou a competitividade das moedas de outros países asiáticos e foi uma das razões responsáveis pelo sensível declínio na taxa de crescimento das exportações da região em 1996.
As desvalorizações a que foram forçadas a Tailândia, a Malásia e os demais já eliminaram em grande parte a vantagem adquirida pela China três anos atrás. É preciso agora esperar para ver o que acontecerá com as exportações chinesas nessas novas condições e o efeito que o provável enfraquecimento do desempenho comercial terá sobre a moeda de Beijing e, por tabela, sobre a de Hong Kong.
Mais, porém, do que a China, o Japão detém provavelmente a chave dos futuros desdobramentos da crise asiática. Convalescendo lentamente do impacto da explosão da "bolha especulativa" do início da década, a economia japonesa acaba de ter uma recaída e já se encontra tecnicamente em recessão. O PIB japonês contraiu-se 1,4% nos seis meses até setembro. Sua moeda se deprecia significativamente: o dólar chegou a 129,20 yens, a mais baixa cotação dos cinco últimos anos. Como mais de 40% das exportações nipônicas escoam para a Ásia, será difícil esperar uma retomada do crescimento via exportações. O sistema bancário está fragilizado pela magnitude dos empréstimos irrecuperáveis (calcula-se em mais de US$ 200 bilhões). O déficit público atingiu 4% no ano passado.
Finalmente, resta a economia americana, que faz figura de estrela solitária na constelação global onde, um a um, os demais astros se apagam ou amortecem a luz. Hoje, todas as economias em busca de equilíbrio -Japão com yen desvalorizado, China já responsável por um terço do déficit americano, asiáticos e latino-americanos em crise- dependem desesperadamente do que conseguirem exportar para o mercado dos EUA, quase a única fonte de demanda de importações diante do desaparecimento da demanda asiática e do lento crescimento europeu. O dólar americano se valoriza (o que, diga-se de passagem, é péssimo para nós) e aos poucos se reproduz o filme que já vimos antes do acordo do Plaza de 1985: gigantescos déficits comerciais, pressões protecionistas. Desta vez, porém, há uma diferença: em lugar de déficit no orçamento, os EUA se aproximam do equilíbrio fiscal. Isso significa que a demanda por importações tende a declinar justamente quando o resto do mundo mais precisa de um imenso sorvedouro de produtos em excesso.
Se adicionarmos a esse panorama a persistência, embora com sobressaltos, da "euforia irracional" na Bolsa de Nova York, há razões suficientes, se não para tocar o tango "Fumando Espero", ao menos para ouvir alguns "blues" que nos preparem ou para o rabo do furacão ou, Deus nos guarde, para algo pior.

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