São Paulo, sábado, 6 de dezembro de 1997
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Rumba velha e código novo

JOSÉ PAULO CAVALCANTI FILHO

Como um touro furioso nas ruas de Pamplona ou um Herzog alucinado pelas matas amazônicas, o Congresso ameaça-nos com um novo Código Civil. O que lembra uma estranha e triste história que ouvi de Eduardo Galeano (um pouquinho aumentada, claro: ninguém é de ferro), sobre a morte morrida de um velho rumbeiro de Havana.
Seu enterro parecia a descida de um deus antilhano, rico de amigos, políticos, prestigiadores e carpideiras, como convinha a um morto de sua estirpe. Ninguém se lembrou de encomendar a alma. Nem precisava, que ela já estava comprometida com seus fantasmas.
O abrir covas era preguiçoso, ao som de duas pás tão sem ritmo que, se alguém de longe ouvisse, até estranharia; quem viveu nos dois tempos da rumba merecia subir aos céus acompanhado por maracas, pífaros e timbales.
As horas passavam e, como era seco o chão e pouca a vontade de cavar, começou a se ouvir o som de uma rumba bem perto. E então foram-se todos: primeiro os que não o conheciam, depois os amigos. Uma hora mais e já não havia ninguém -só o pau-de-rede de cana de angola, o par de argolas segurando o tecido curtido e, dentro dele, um corpo cor de alabastro.
Assim abandonado, o velho rumbeiro viu-se condenado a escolher seu destino; como não lhe convinha o suor do esforço de enterrar-se ele mesmo, deixou tudo para depois e foi para a rumba, vagando ainda hoje pelos terreiros, sem saber ao certo o que está fazendo e metendo medo em toda a gente.
Agora, nosso Congresso cismou de imitar o dito rumbeiro, com o Senado aprovando, em 26/11, o projeto de um novo Código Civil. Como já acontecera na Câmara (em 9/5/84), irregularmente, em votação simbólica, sem que se perceba como pode alguma votação ser realizada "simbolicamente" no Congresso, por uns poucos líderes, dado que o art. 47 da Constituição de 1988 (como o art. 31 da Carta de 1967) exige a presença da maioria dos membros de cada Casa. Ele deve agora ser submetido, em última instância, à Câmara. O instrumento desse medo, assim, não é uma assombração banal; é pior, é o risco de aposentar um ótimo Código Civil.
Ruim nessa decisão é que, além de ser um projeto tecnicamente insuficiente, com numerosíssimas imprecisões (já amplamente anunciadas), adotaremos uma posição oposta a toda a tendência da cultura jurídica que nos é próxima: introduzir mudanças -assim que o determine a mudada realidade social- em textos já amplamente conhecidos pelo indeterminado cidadão comum.
O argumento de que o código é velho, de 1916, resulta indigente; é, aliás, desejável que todos tenhamos na memória a maioria de seus dispositivos. O código alemão é de 1896, e o francês, de 1804.
As novidades anunciadas como justificativa para abandonar um código de excelência, como o nosso, são modestíssimas. Como a redução (muito discutível) da maioridade civil, que se poderia fazer alterando o "caput" de um artigo (o 9º); ou novas regras sobre filiação ilegítima, muito poucas em relação aos 1.807 artigos do atual código.
Aproveito a oportunidade para observar que, ao longo do tempo, foi-se alterando o entendimento dos principais responsáveis por esse projeto.
O ministro do STF José Carlos Moreira Alves, membro da comissão redatora, dizia em 1969: "Com relação ao direito civil não se fazia mister substituir, bastava rever. No Brasil -agravando sensivelmente a inflação legislativa, que já é um dos nossos mais poderosos fatores de inquietação social-, o que se pretende substituir é um código que, apesar de seus 50 anos, resiste -pela excelência da obra- a confronto com códigos que se acabam de elaborar, como o novo Código Civil português. Por que, então, substituí-lo, em vez de revê-lo? Meditai para responder".
Já o professor Miguel Reale, supervisor da comissão, dizia em 1964: "Não sei por que estamos tomados de delírio legiferante. (...) Enfileiro-me entre os que defendem a política legislativa orientada no sentido de introduzir no Código Civil todas as modificações indispensáveis, mas com o mínimo de alteração em sua estrutura". Pena que tenham mudado tanto de opinião.
Curiosamente, Reale, em seguida, ressalta a conveniência de "relembrar os ensinamentos de Savigny sobre a obra codificada". Só que -para azar do professor- Savigny diz que "uma jurisprudência lentamente amadurecida por jurisconsultos ilustrados seria sempre preferível a uma lei nova e criada, por assim dizer, de um só golpe".
Vivemos um momento importante de nossa história. Exige-se da consciência jurídica brasileira uma tomada de posição contra a possibilidade de substituição de um Código Civil respeitado.
A permanência desse código é necessária, porque é inestimável o valor social em certeza que se destrói quando se substituem ordenamentos enriquecidos pelo generalizado conhecimento que se vai progressivamente acumulado ao longo de sua vigência.
Por isso, srs. deputados, por favor: parem a rumba, arquivem o projeto e vão cuidar de coisas mais importantes.
P.S.: Meu pai publicou, de 1972 a 1995, nove pequenos livros contra a ab-rogação do Código Civil. Silenciado no ano passado, cumpro o dever íntimo de dar-lhe voz.

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