São Paulo, domingo, 7 de dezembro de 1997
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O futuro da Terra é decidido no concílio híbrido de Kyoto

BRUNO LATOUR
ESPECIAL PARA A FOLHA

Imaginemos que em Roma, na época de Galileu, se reunissem em um concílio filósofos, cardeais, pesquisadores e príncipes para decidir sobre a queda dos corpos e o movimento da Terra! É exatamente o que se passa na estranha reunião de Kyoto. Como na do Rio, ela congrega ao mesmo tempo altos funcionários, governantes, especialistas, cientistas e militantes, para decidir sobre o movimento da Terra.
Impossível separar claramente os que representam as nações e os que representam as nuvens, a circulação atmosférica, as correntes marinhas e as florestas. De um lado, temos os eleitos clássicos, que falam em nome dos humanos, e de outro, os novos eleitos (geralmente autodenominados), que falam em nome dos não-humanos. O clima nos parece então, ao mesmo tempo, um objeto científico -um consenso se forma entre os pesquisadores- e um objeto político -ele obriga uma comunidade a uma ação que se estende ao planeta inteiro.
Eis uma excelente ocasião para testar a estranha noção de "Parlamento das Coisas" que eu já havia proposto há alguns anos (1) para compreender essas assembléias surpreendentes em que se decide, ao mesmo tempo, sobre o cosmos e a política -aquilo que Isabelle Stengers depois propôs chamar de cosmopolítica.(2)
A antiga diferença entre ciência e política não pode, evidentemente, explicar o concílio de Kyoto. Não se pode dizer, por exemplo, que os cientistas definem os fatos e que os políticos se ocupam dos valores. De fato, a própria idéia de um perigo planetário que deva preocupar todos os homens se apresenta como um híbrido completo de fatos e de valores. O clima, por sua própria importância, torna-se o bem soberano, para falar como os filósofos da moral, isto é, o objeto que devemos colocar em primeiro lugar em nossa escala de valores, pois ele abriga todos nós, humanos e não-humanos confusos.
Por que retomar a antiga diferença? Ninguém deseja misturar tudo e confundir a necessária isenção do trabalho científico com as negociações de corredores sobre a redução das emissões de dióxido de carbono. Não queremos que a objetividade científica seja interrompida constantemente pelo peso das ideologias e dos interesses.(3) Ao contrário, não basta que os climatologistas estejam de acordo para que todas as outras atividades prossigam como um só homem, obedecendo, assim, a uma forma de ditadura sábia.(4) Como então preservar as inevitáveis diferenças ao reconhecer na assembléia de Kyoto seu caráter híbrido?
Uma das soluções possíveis consiste em substituir a diferença entre os fatos e os valores por uma outra diferença, muito mais de acordo com os debates atuais. Cientistas, políticos, industriais e militantes se encontram confrontados com duas questões distintas: quantos seres novos devemos ter em conta para levar a bom termo nossa existência? Podemos viver juntos em um único mundo comum? Não digamos que a primeira questão é científica e que a segunda é política, porque ambas misturam, mas de uma forma diferente, as atividades da ciência e da política. Digamos, sobretudo, que elas formam duas assembléias distintas: uma câmara e um senado, para acompanhar a metáfora constitucional. Na câmara, temos de nos ocupar com a perplexidade dos novos candidatos que se apresentam à existência; no senado, devemos decidir sobre sua hierarquia e seu grau de certeza.
Deste ponto de vista, Kyoto se apresenta sobretudo como um senado. A perplexidade continua, a indecisão pode se perpetrar, mas a assembléia decide instituir a mudança de clima como uma realidade efetiva e como um perigo maior, que obriga todos os outros interesses a curvar a cabeça. Vê-se bem que a noção de "fato" não tem a clareza que geralmente lhe é reconhecida: sob a mesma palavra se escondem, ao mesmo tempo, o que se pode discutir, o que engendra a perplexidade, o que deve talvez ser tomado em conta e, por outro lado, o que não se deve mais discutir, o que é definitivamente provado. Sob a palavra do fato, confundimos duas assembléias distintas: a que produz a incerteza e a que produz a certeza.
A vantagem da nova distinção é que ela permite reivindicar claramente o caráter político da instituição dos fatos. Os pesquisadores se encontram agora embarcados em uma decisão híbrida para produzir um objeto político, isto é, um mundo comum, uma res publica: aqueles que colocam novamente em questão o consenso se tornam os "inimigos" políticos. O pesquisador não pode murmurar, como Galileu depois do veredicto da cúria: "E, no entanto, ela se move!"

Notas:
1. "Jamais Fomos Tão Modernos", Editora 34, Rio de Janeiro;
2. "Cosmopolitiques - Tome 1: La Guerre des Sciences", Isabelle Stengers, 1966;
3. "Betrayal of Science and Reason - How Anti-Environmental Rethoric Threatens our Future", Paul Ehrlich e Anne H. Ehrlich, Island Press, Washington, DC, 1997;
4. É todo o sentido da crítica da ecologia proposta por Luc Ferry, em "Le Nouvel Ordre Écologique - L'Arbre, L'Animal et L'Homme", Grasset, Paris, 1992.

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