São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 1997
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Cadê a merenda? A crise comeu; A palavra "trabalhador" virou insulto?; Cardeal; Feliz 99; Fim do mundo; Não chateia; FFHH passeia pelo "grampo" de Kennedy; Nestor Jost; Voz experiente

ELIO GASPARI

Cadê a merenda? A crise comeu
O programa da merenda escolar sempre foi uma jóia da coroa do governo. É o maior do gênero no mundo. Dá um prato de comida por dia de aula a 36 milhões de crianças das escolas de 1º grau e neste ano custou à Viúva R$ 680 milhões. Ela não reclama. Sabe que em 1998 a alimentação dos 5.500 funcionários da Presidência da República lhe custará R$ 5,3 milhões, dinheiro equivalente à comida das crianças de Brasília.
Nenhum governo serviu tantas merendas ou investiu tanto nesse programa quanto o de FFHH. Ele paga R$ 0,13 por porção servida e criou uma merenda de R$ 0,20 para os 5 milhões de garotos protegidos pela rede do programa Comunidade Solidária.
Pois acabou-se o que era doce.
O ministro da Educação, Paulo Renato Sousa, sem mexer no custo do prato de comida, pediu R$ 934 milhões para alimentar as crianças no ano que vem. Os ministros Antonio Kandir (PSDB-SP) e Pedro Malan mandaram que se virasse com R$ 634 milhões. Tungaram-lhe R$ 56 milhões em relação ao que se gastou neste ano e negaram-lhe recursos para novas necessidades. A tunga líquida, a diferença entre as despesas de 97 e o que se quer dar em 98, equivale à estimativa do custo de toda a merenda do Rio de Janeiro.
Até aí, há apenas um caso de corte de recursos que afeta as crianças, a educação e, quase sempre, estudantes pobres. A administração do corte é um verdadeiro passeio pelos delírios da burocracia.
Existiu uma proposta de indexação da merenda. Os Estados que gastam mais dinheiro com educação receberiam menos. Os que gastam menos receberiam mais. Assim, São Paulo receberia R$ 0,05 por merenda, enquanto o Maranhão ficaria com R$ 0,12 centavos. (Deixa pra lá algumas curiosidades históricas. No século 17, os maranhenses eram mais bem educados que os paulistas. No século 20, a governadora Roseana Sarney, filha do ex-governador José Sarney, educou-se na Suíça, enquanto os filhos do governador de São Paulo, Mário Covas, educaram-se no Brasil e dificilmente haverão de sucedê-lo.)
A idéia morreu. Foi substituída por um corte linear de 30% na despesa projetada. O corte não deixará as crianças sem merenda. Simplesmente terão à mesa mais biscoitos e menos carne ou leite.
Segundo o governo, as merendas das crianças protegidas pelo Comunidade Solidária terão R$ 0,14 centavos de comida. As das redes públicas estaduais, R$ 0,09. Sabendo-se que Ruth Cardoso é capaz de administrar merendas com mais juízo que o governador Paulo Afonso Vieira, o "Barão dos Precatórios", pode-se supor que a coisa funcione. Como o corte não se baseou em critérios técnicos do Ministério da Educação, mas na faca dos ministros Kandir e Malan, dele resultam algumas monstruosidades.
As 380 mil crianças de Brasília, onde não há escola na rede do Comunidade Solidária, terão R$ 3 milhões para comer. Quantidade semelhante de dinheiro será gasta com 218 mil crianças do Comunidade no Pará.
Cabe o argumento de que o nível econômico das crianças de Brasília é superior ao da garotada paraense. Certo. Nesse caso, a rede do Comunidade Solidária seria um fator de redistribuição racional dos recursos. Resta achar racionalidade nos seguintes números:
O Comunidade Solidária ampara 30% das crianças da rede pública do Rio de Janeiro, mas só 11% da meninada mineira. Mais: protege 44% no Espírito Santo (235 mil merendas), mas no Ceará a percentagem cai para 17% (250 mil merendas). São Paulo tem a menor a percentagem depois de Brasília: 6%, menos da metade da do Rio Grande do Sul.
(O ministro da Educação, flor do orquidário do ex-prefeito Paulo Maluf, que o chama de "tucano de bico doce", fechará o ano tendo caloteado R$ 10 milhões da merenda da rede escolar do Estado de São Paulo. À granja Celso Pitta, pagou tudo em dia.)
Antes que o Comunidade Solidária se transforme no seu similar mexicano, criado pelo inesquecível presidente Carlos Salinas de Gortari, seria o caso de pensar se ele deve se superpor à ação dos Estados, trabalhando com dinheiros diferentes.
Se é preciso cortar o dinheiro da merenda, que os ministros Kandir (PSDB-SP) e Malan assumam a responsabilidade por um valor adequado, tomem um carro e vão procurar Ruth Cardoso, para lhe dizer que a partir de agora o prato de comida terá um só custo. Igual para ela e para o governador Amazonino Mendes, ambos da bancada governista.

A palavra "trabalhador" virou insulto?
O governo precisa fazer as pazes com o trabalho. Em fevereiro de 1995, ele mal tinha começado, e o ministro Paulo Paiva, respondendo a uma pergunta sobre reivindicações operárias, saiu-se com esta:
- Eu sou ministro do Trabalho. Não sou trabalhador.
Na semana passada, disposto a afastar o governo da carnificina social que se está armando no cinturão industrial de São Paulo, FFHH foi na mesma linha:
- Eu não sou trabalhador, nem dono de empresa.
Engano, professor. Fernando Henrique Cardoso, CPF 052 446 028-20, é trabalhador do serviço ativo dos funcionários da União e recebe R$ 8.500 por mês pelo que faz. (É também inativo, como professor aposentado da Universidade de São Paulo, mas isso não vem ao caso.) Ademais, é empresário, sócio da Agropecuária Córrego da Ponte, em Buritis, Minas Gerais, nome da fazenda que comprou com seu amigo Sérgio Motta.
Há em seu governo uma propensão à perversidade em relação ao trabalho alheio. Um exemplo:
Há poucos meses, FFHH sancionou a lei nº 9.478, regulamentando a quebra do monopólio estatal do petróleo. O texto aprovado pelo Congresso continha dois dispositivos relacionados com as refinarias particulares.
Um garantia por cinco anos a política de subsídios do preço do óleo que elas compram à Petrobrás. Um presentinho de alguns milhões de reais para o balanço das empresas e o patrimônio de seus acionistas.
O outro obrigava os industriais favorecidos pelo subsídio a preservar, também por cinco anos, os postos de trabalho em suas refinarias.
FFHH deixou o subsídio passar e vetou o item que garantia os postos de trabalho.

Cardeal
A ala conservadora da hierarquia católica vem cozinhando, em Roma, uma surpresa para os progressistas. Trabalha a elevação ao cardinalato de d. Claudio Hummes, arcebispo de Fortaleza.
Nos anos 80, d. Claudio era um dos quindins da esquerda. Saía em procissão, de cruz em punho, liderando manifestações de metalúrgicos. Aos poucos, mudou de curso.

Feliz 99
Três grandes bancos paulistas estão trabalhando com cenários de crescimento zero para a economia brasileira em 1998.
Um deles estima uma queda de 5% da produção industrial no primeiro semestre.

Fim do mundo
Antes que o palavrório em torno do ano 2000 comece a destruir a paciência universal, uma pequena lição do biólogo Stephen Jay Gould, que acaba de lançar nos Estados Unidos um livro intitulado "Questionando o Milênio" ("Questioning the Millenium").
A conversa segundo a qual o mundo acabaria no ano 2000 teria começado no século 6, quando um monge chamado Dionísio, o Pequeno, preparou uma cronologia cristã para o Papa João 1º. Dionísio cometeu um pequeno erro. Pela sua conta, Herodes, o Rei da Judéia que mandou matar as crianças para impedir o nascimento do Messias, morria no ano 4 a.C.. Como isso era impossível, um arcebispo irlandês do século 17 refez a cronologia e remarcou o fim do mundo para o dia 23 de outubro de 1996.
Ele também cometeu um erro. Segundo Gould, esqueceu de contar o ano zero. Assim, o fim do mundo teria sua data corretamente fixada para o dia 23 de outubro de 1997.
Para quem gosta de brincar com superstições, levando em conta que ninguém disse que o mundo acabaria de um dia para o outro, vale lembrar que a Bolsa de Hong Kong foi-se com a breca no dia 23 de outubro.
Pode não ter sido o fim de todo o mundo, mas que foi o fim da festa do papelório, não há dúvida.

Não chateia
Diálogo ouvido por quem estava perto, durante o jantar a FFHH no Palácio de Buckingham:
Princesa Margaret: "Esse vinho não está bom".
Rainha Elisabeth: "Toma e fica quieta. Um copo de vinho ruim não faz mal a ninguém".
Isso é que é rainha. Teve a coragem de dizer a frase que fica congelada na garganta de milhões de donas da casa diante de convidados chatos.

FFHH passeia pelo "grampo" de Kennedy
FFHH deu uma boa sapeada num exemplar do livro "The Kennedy Tapes" ("As Fitas de Kennedy"). Trata-se da transcrição das reuniões comandadas pelo presidente John Kennedy durante a crise provocada em 1962 pela existência de mísseis soviéticos em Cuba.
Kennedy gravava-as clandestinamente, os microfones sumiram no dia do seu assassinato e, por mais de 20 anos, só cinco pessoas souberam de sua existência.
"Já imaginou se eu estivesse gravando tudo?", perguntou FFHH a um visitante, no Planalto.
Um palpite: o desempenho do governo melhoraria. E ainda sobraria o Alvorada para outras conversas.

Nestor Jost
(80 anos, ex-presidente do Banco do Brasil.)
*
-Há poucos dias, reunido com um grupo de empresários, o senhor se queixou da política agrícola do governo e contou que o Brasil está importando coco da Suíça. O que é isso?
-A política agrícola está atacada por três pragas: juros, câmbio e impostos. Acontecem coisas que, se alguém inventasse, passaria por louco. Entre 1993 e 1994, o Brasil importou US$ 10 milhões de cocos africanos e asiáticos, vindos de países que subsidiam os produtores. Impusemos uma sobretaxa para esses países, mas neste ano compramos algo como US$ 500 mil de cocos da Suíça e do Chile. Como todos sabem, os coqueirais dos Alpes e dos Andes estão entre as mais belas paisagens do mundo. O pior é que, se esse coco viesse da Ásia, ficaria mais barato, porque o coco da neve vem com o sobrepreço da triangulação. Estamos comprando leite europeu subsidiado, disfarçado de argentino, uruguaio ou chileno. Eu suspeito que a nossa importação de leite do Chile já ultrapassou a produção nacional daquele país. De exportadores de algodão, viramos o segundo maior importador do mundo. A contrapartida disso é o abandono da lavoura. A área plantada de algodão caiu de 2 milhões de hectares para 700 mil hectares. Isso significa que 800 mil pessoas mudaram de atividade ou ficaram sem serviço. É mais gente que todos os sem-terra somados.
- O presidente da República diz que está garantindo a produção com juros abaixo do mercado e com o Pronaf.
- O Pronaf beneficia microprodutores. É um louvável programa assistencial, mas não tem relevância para o conjunto da produção agrícola. O plantador que tem sorte de conseguir um crédito parcial a juros de 15% ao ano (contra 5% nos Estados Unidos e 7% na Argentina) acaba precisando de um reforço junto à rede privada, com taxas de 150%. O presidente dizia que os juros de 20% ao ano não eram civilizados, mas subiu-os para 40%. Os arrozeiros do Rio Grande do Sul não têm acesso a crédito preferencial. Viramos importadores de arroz. Houve uma época em que a lavoura era vítima da saúva. Agora é vítima da finança.
- O senhor dirigiu o Banco do Brasil quando se falava em vaca-papel e em trigo-papel, golpes de fazendeiros que embolsavam o crédito e não plantavam coisa alguma. Essas queixas não são conversa? Há fazendeiro pobre?
- Quando as fraudes aparecem, você age e acaba com elas. Eu acabei com o trigo-papel. Mas lhe devolvo a pergunta: você conhece empresa estrangeira metida com plantio no Brasil? Em toda minha vida só ouvi falar de uma iniciativa, audaciosa, do Walther Moreira Salles associado ao Nelson Rockefeller, dois grandes homens de negócios. Pois eles venderam o empreendimento. As multinacionais não querem nada com o plantio. Estão, e muito bem, na comercialização. O governo está mantendo o câmbio forte para segurar o real. Com isso ele estimula a importação, desequilibra as nossas contas internacionais e torna o real uma moeda vulnerável. Corre atrás do próprio rabo.

Voz experiente
Um profundo conhecedor da alma do ex-presidente Itamar Franco está cada vez mais convencido de que ele não é candidato a presidente da República nem a governador de Minas Gerais.
É candidato a continuar como embaixador, na Organização dos Estados Americanos, ou num país europeu.

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