São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 1997
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O imaginário teimoso

ROBERTO CAMPOS

Quem nunca se sentiu inconformado com o mundo real será, talvez, um santo ou um sábio. O que poucos são. Ou então um alienado, em qualquer dos sentidos que o leitor prefira. Movimentos de descontentes com as coisas como são sempre existiram. E são até uma das molas que empurram os homens para a frente, levando-os a experimentar com tudo o que têm em volta e a inventar coisas. De vez em quando, acabam em desastre.
Mas não estou aqui pretendendo filosofar, se bem que, afinal de contas, o homem seja o animal filosofante por definição. Só quero lembrar, de leve, um fenômeno que ocorre por grandes ondas ao longo da história, e que nestas últimas décadas tem navalhado profundamente nossas formas de compreender o contexto em que estamos metidos.
Falo do que poderíamos chamar de "revolta contra a Razão". Não é muita novidade, aliás. O homem é um ser cercado de mistérios por todos os lados, que aspira a entender o porquê de tudo e pelas suas próprias forças acaba sempre por tropeçar nos limites da sua capacidade de compreender.
Pouco a pouco, à custa de muito esforço e método, isto é, da capacidade de ordenar as suas idéias em níveis sucessivos de abstração, ele tem conseguido esticar cada vez mais esses limites. Aplicando seu conhecimento às atividades práticas, por meio da tecnologia (o termo que hoje se generalizou), vem abrindo espaço, dominando um pouco mais a natureza, aqui e ali.
Mas os insatisfeitos não são poucos, por uma imensa variedade de razões. Não gostam do mundo como é, seja porque nele percebem sofrimento e tristeza, seja porque acham que poderiam fazer muito melhor -ou seja, simplesmente, porque pretendem submeter os outros a sua vontade. De qualquer forma, o herege ou o ateu são sempre uma contrapartida para a religião; os republicanos, para os reis; os totalitários, para os democratas; os socialistas e reguladores de todos os naipes, para os partidários da liberdade individual.
Antes da era moderna, a Razão era uma senhora pudica, que se encolhia cuidadosamente quando se levantava a Crença, ou seja, a Verdade Revelada, que é a mensagem fundamental de todas as religiões. Mas, desde as alturas do século 15, os europeus tomaram um formidável pifão de racionalidade e começaram a aplicar a torto e a direito sua capacidade de pensar.
Alguns suspeitaram sempre que fosse mais a torto que a direito. Como quer que seja, a racionalidade teve um impacto revolucionário. Minou as verdades antes não questionadas, a ordem do universo e, por fim, a ordem estabelecida da sociedade. O direito sagrado dos reis, pendurado em supostas decisões da Providência, veio por água abaixo quando alguns sujeitos mais ousados inventaram mosquetes e canhões, grandes navios a vela, e descobriram que a Terra não era uma grande tigela, e sim um globo, e principiaram a descobrir-lhe as partes faltantes. E a ilustração pareceu juntar tudo numa grande harmonia.
A ordem da Razão passou, porém, a ser atacada quando as mudanças revolucionárias começaram, no século passado, a frutificar nas instituições democráticas e na economia de mercado de livre concorrência. Primeiro, na literatura, nas artes e na filosofia, ao tramitarmos da vaga indisciplina do romantismo à dialética de Hegel e depois à ruptura aberta de Nietzsche.
Marx ainda é, em parte, um herdeiro da tradição humanista, mas dá um salto por cima, quando atribui à Revolução (pelo simples truque de acabar com a propriedade privada dos meios de produção) a mágica de criar a fraternidade e a abundância universais. Gente querendo cair fora das tristezas deste mundo sempre houve. Os "wandervõgel" alemães da virada do século prenunciavam os hippies.
Mas foi com o tremendo trauma da Primeira Guerra Mundial que surgiram os movimentos políticos totalitários irracionalistas -o fascismo, o bolchevismo e o nazismo-, ao mesmo tempo que os conflitos não resolvidos entre as grandes potências acabaram levando à grande Depressão dos anos 30, e ao surgimento do "Estado-babá". Este, depois de meio século, ao dobrar a esquina da década de 80, já não funcionava mais direito.
O interessante é que, nestes últimos tempos, as esquerdas abandonaram sua antiga fé de carvoeiro na vinda do Messias e da "revolução final". Esqueceram os seus métodos "científicos" (com licença de Marx...) e deram para se morderem umas às outras no meio do maior festival de irracionalidade. Nos Estados Unidos, onde desde 1912 as suas perspectivas políticas eram nulas, as esquerdas, aí pelos anos 60, começaram a esquecer os "sonhos comuns" e partiram para uma "política de identidades", focalizando negros, hispânicos, índios, gays, lésbicas e todos os grupos que achassem que tinham demandas a apresentar.
A coisa dá saltos. Um dos cardeais do pensamento de esquerda, Korsch, proclama que "a crítica teórica e a prática da derrubada revolucionária são inseparáveis"!... Surgiram caóticos movimentos de pós-estruturalismo, pós-modernismo, pós-marxismo. Um autor chamado Krasivyj pergunta "como escapar de ser esmagado entre o neofrontismo do Estado do Bem-Estar Social e a direita social em todas as suas variantes?" Entenderam? Tem mais. "Entre o mercado, o consumo e a fragmentação do sujeito"... Lyotard se ocupa com o fim das grandes narrativas e das ideologias universalistas, substituídas pela "contingência", pela "dissolução" do sujeito numa pluralidade de jogos linguísticos, com a corrida atrás do prazer, a renúncia a qualquer nível geral de mudança ou revolução, em favor da exaltação da revolta individual e dos fugazes momentos de liberdade.
Por trás disso, a esquerda tradicional sente a sombra do niilismo e da destruição de todo o sentido. Lá pelo fim da sua vida, o encoscorado Marcuse falou que "a tendência é para a direita"... No meio da confusão, dois americanos, Barbrook e Cameron, sacaram uma "ideologia californiana", fusão da boemia de São Francisco e do espírito hi-tech do Vale do Silício, com o aparecimento de uma "classe virtual". E a Internet está começando a ser vista apreensivamente pelas esquerdas como uma perigosa forma de hiperliberalismo (imaginem só: todo o mundo dizendo o que quer, sem governo para controlar?).
Foucault, Lacan, Baudrillard, Deleuze, Guattari, Derrida, Jameson, Lyotard, Laciau. Vai por aí afora. Está ficando cada vez mais difícil dizer coisa com coisa por meio do nosso discurso ordinário. Em todas as partes, os espíritos experimentam forçar os limites do dizível e compreensível. O êxito das ciências "sólidas" e da tecnologia provocam irritantes comichões ideológicos. Não foi à toa que o físico americano A. Sokal, como eu apontei aqui faz algum tempo, provocou uma tempestade num copo d'água ao denunciar as pretensiosas expressões sem sentido desses filósofos e "críticos da ciência". A briga continua, agora na Europa.
Poderíamos citar muita coisa engraçada, mas não queremos tirar de contexto as angústias sérias de pessoas que se sentem perdendo o pé no mar de violentas e incessantes mudanças que é a nossa realidade atual. Apenas é preciso distinguir tais angústias mentais da operação dos mecanismos do nosso quotidiano. O intelectual que fala pedantemente na "economia política da realidade virtual" viaja de carro e de avião, usa geladeira e televisão, tem conta no banco e não deixa de fazer sua tomografia computadorizada quando o médico manda nem de engolir as pílulas fabricadas por multinacionais.
É assim também para nós. Só temos este mundo que está aí, e as mudanças que têm sido feitas resultaram, em última análise, da Razão, da curiosidade experimental e da paciente acumulação de conhecimentos, sem esquecer a formação de capital e a briga pela preferência do consumidor. Não é tudo o que a alma humana quer. Mas é o mundo real, bem mais prosaico, e muito mais útil, que o mundo virtual.

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