São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 1997
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As leis da compensação

JOÃO SAYAD
ESPECIAL PARA A FOLHA

A crise do Sudeste da Ásia é um sinal de novos tempos ainda mais difíceis? Será uma derrota do neoliberalismo?
Os neoliberais negam. A direita sempre sabe o que deveria ter sido feito para evitar a crise que acabou de ocorrer. A crise é sempre o resultado de algum "erro" do governo, do Banco Central ou do burocrata do momento. Tudo é uma questão de competência.
Para Milton Friedman, a crise de 1930 foi resultado de uma política monetária "errada", que apertou o crédito quando a bolsa de Nova York começou a cair. O "erro" do Federal Reserve resultou da nomeação de um presidente originário de Washington, austero e provinciano, que substituiu o representante cosmopolita de Nova York.
O deputado Roberto Campos, na página 3-1 da Folha de 7/12/97, afirma que não há por que se alarmar com as crises das bolsas do Sudeste da Ásia. Trata-se de países que não fizeram a "lição de casa" no setor financeiro. Bancos insolventes, mal administrados, não poderiam dar noutra coisa. O mundo vai muito bem e o modelo neoliberal também, não fossem estes erros.
Para a esquerda, a crise das bolsas é grave. Os "erros" dos bancos resultam de processos especulativos correntes ou do passado que são parte inerente da economia atual, marcada por excesso de produção e falta de demanda.
A capacidade de produção cresce por adoção de novas tecnologias -desde informática e telecomunicações, inovações em biologia, agricultura, conservação de energia até novas formas de organização que requerem menos mão-de-obra e menos matérias-primas.
A falta de demanda resulta das mesmas razões -desemprego causado por novas tecnologias, novas formas de organização, salários mais baixos decorrentes das novas tecnologias e concorrência com países de governos autoritários com sindicatos fracos ou excesso de mão-de-obra.
As estatísticas mostram estes resultados. Apesar de tanto progresso técnico, há 20 anos que o mundo cresce mais devagar.
Nos países mais ricos, como os Estados Unidos, a concentração de renda tem aumentado e os ricos poupam demais.
Com exceção do Sudeste Asiático, os países subdesenvolvidos crescem mais lentamente do que os países ricos e a renda se concentra novamente nos países mais ricos. Países ricos que, novamente, poupam mais do que os países mais pobres. O emprego cresce lentamente com salários mais baixos, o desemprego é alto, e desempregado não consome.
Como compensar o excesso de produção? Excessos de produção ou renda e excessos de oferta de mão-de-obra (desemprego) com relação à demanda são chamados de superávits.
Para compensá-lo, precisamos de déficits. Ao nível dos governos nacionais, os déficits públicos compensam e seguram o nível de demanda agregada. O governo gasta o que o setor privado não demanda.
Os déficits comerciais compensam os superávits entre os diferentes países do mundo -um país gasta mais do que produz e compensa o superávit do outro que gasta menos do que produz.
Assim, o déficit público de todos os países do mundo tem o efeito de "segurar" o nível de demanda agregada, a produção e o emprego. Os déficits comerciais transferem demandas de um país para outro. Não temos tido inflação nem crescimento rápido. Portanto poderíamos concluir que a soma de déficits tem apenas compensado a soma de superávits.
Déficits precisam ser financiados. Déficit é exatamente a parcela dos gastos de qualquer organização, empresa, governo ou país que precisa ser financiada por empréstimos.
Enquanto houver financiamento para os déficits públicos, americanos, europeus, mexicanos ou brasileiros, ou seja, enquanto investidores estiverem dispostos a comprar dívida pública, tudo vai bem.
O imenso déficit comercial dos Estados Unidos, da mesma forma, segura a demanda agregada em nível mundial. Enquanto bancos e investidores estiverem dispostos a financiar o déficit comercial americano, a demanda agregada em nível mundial ficará mais elevada.
É preciso confiar no poder de compra da dívida pública para que os déficits possam continuar e a demanda agregada não se reduza.
O superávit comercial do Japão, país que trabalha muito e gasta pouco, agrava o problema de excesso de oferta, reduz a demanda e pode causar diminuição da demanda e da produção dos diversos países do mundo.
Os déficits comerciais do Sudeste da Ásia, da América Latina e do Brasil compensavam e compensam a falta de demanda e os superávits de outros países do mundo.
Enquanto os japoneses estiverem dispostos a acumular reservas e financiar o déficit comercial americano ou investir no Sudeste da Ásia e outros investidores estiverem dispostos a financiar a América Latina, não há por que se preocupar.
Ainda que a desvalorização cambial possa ser um ótimo remédio para um país isolado, não funciona quando se consideram todos os países conjuntamente. As recentes desvalorizações cambiais do Sudeste Asiático podem ser explicadas como o resultado da falta de financiamento para estes países, que passaram a exportar menos depois que a China desvalorizou a sua moeda. Passaram a ter déficits comerciais que, tendo crescido muito, geraram desconfiança e, por isso, não conseguiram ser financiados.
Como quase todos desvalorizaram, os efeitos foram anulados entre si. A Tailândia não exportará mais para a Coréia, nem a Coréia exportará mais para a Tailândia. O efeito da desvalorização só não se anulou com relação à China enquanto a China não desvalorizar.
Então, a crise do Sudeste Asiático é grave ou não?
É grave na medida em que representa o fim do financiamento dos déficits comerciais daqueles países. É grave se causar problema para os bancos japoneses, que poderão financiar menos outros países, inclusive o Tesouro americano. É grave se gerar desvalorizações competitivas e ondas de protecionismo.
Não podemos nos enganar sobre o tamanho relativo do Sudeste da Ásia, excluída a Coréia. O mundo é logarítmico: a ordem de grandeza dos países emergentes é irrelevante para Estados Unidos, Europa e Japão.
Sudeste da Ásia e América Latina não conseguem manter elevado o nível de emprego do mundo desenvolvido. Em compensação, quando em crise, não conseguem reduzir excessivamente a produção e o emprego mundiais.
Assim, não há por que se preocupar enquanto os Estados Unidos continuarem a ter bom déficit público, bom déficit comercial, assim como a Europa, e enquanto todos continuarem a obter financiamentos. Temos ainda a boa notícia do apoio rápido do FMI à Coréia.
Por outro lado, temos a má notícia do acordo de Maastricht, que exige redução de déficits públicos nos países que aderirem à nova moeda européia.
O "dia do pagamento" a que se refere Robert Kurz (leia texto à pág. 5-6) pode estar chegando ou não.
Enquanto houver confiança nos pedaços de papel acumulados para financiar déficits, ninguém vai exigir "receber" o valor dos ativos financeiros acumulados.
Mas, enquanto dependermos excessivamente de "confiança", "expectativas" e "credibilidade", tudo fica muito pouco confiável e incerto.
Podemos comparar os anos atuais com os anos 30. Se a história não ensina muita coisa, pelo menos pode consolar nossas aflições.
Em 1930 também tínhamos crescimento insuficiente da demanda, valorização excessiva de ações e outros ativos financeiros, "mau" comportamento dos bancos, que financiavam posições alavancadas nas Bolsas de Valores.
Os bancos da Europa, particularmente a leste de Berlim, também enfrentavam dificuldades, decorrentes de eventos passados, como a hiperinflação de 1923 na Alemanha e em outros países da região, como Áustria, Hungria e Tchecoslováquia. A comparação mais preocupante é a que se refere ao etos que dominava a política econômica do período.
O desemprego era atribuído à miopia dos sindicatos, que não permitiam flexibilidade do salário nominal. Como se fala hoje.
O equilíbrio fiscal dos governos era a pedra de toque da política econômica, como se fala hoje, ainda que o conceito dos anos 90 tenha sido rebatizado de Estado mínimo, ágil, forte e barato, desde que não tenha déficit público.
As taxas de câmbio tinham que ser fixas e a mobilidade de capitais entre países era alta e considerada benéfica para todos. Hoje, isto é chamado de "globalização financeira".
A retórica da política econômica e dos economistas atuais é quase idêntica, apesar de diferenças sutis. Pois atualmente, para a felicidade de todos, existe menos boa-fé na retórica econômica atual. Ninguém fez tanto déficit quanto o governo Reagan, com um discurso antidéficit público.
Todos os anos as publicações do FMI mostram que muitos países do mundo têm déficits públicos que prometem reduzir no ano que vem.
Outra diferença importante com relação aos anos 30 é que naqueles anos as taxas de câmbio tinham que ser fixas. Os países ricos obedeciam sempre, e os pobres, quando possível.
Hoje em dia, os países do G-7 não têm compromisso algum com câmbio fixo. Apenas os mercados emergentes precisam manter a política de câmbio fixo, que é condição necessária para investidores internacionais confiarem nas moedas domésticas de países distantes e exóticos.
Assim, diferentemente dos anos 30, o padrão ouro (câmbio fixo) é, na prática, regra incontornável para os países subdesenvolvidos, embora não seja a regra para os países centrais.
O resultado da política cambial dos anos 30 é controverso.
Alguns historiadores acham que as desvalorizações competitivas impediram o desenvolvimento do comércio internacional e, por isso, a crise durou mais tempo.
Outros autores acham que as desvalorizações cambiais, particularmente a de Roosevelt logo no começo do seu mandato, foram o sinal de abandono da cultura econômica de austeridade e equilíbrio fiscal. E, a partir daí, o mundo começou a se recuperar da crise.
Sempre é muito cedo para saber a verdade e fazer previsões . Existe muita coisa parecida com os anos 30 e, portanto, razões para preocupações.
A esperança de nossa geração é que a retórica da política econômica não passe de retórica; e que a história não se repita, como prometem os historiadores.

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