São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 1997
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Uma prosa de ensaio

ROBERTO SCHWARZ

Os ensaios de Kurz procuram adivinhar e construir o movimento do mundo contemporâneo, que tratam de colocar em forma narrativa. Como no romance moderno, esta depende de operações intelectuais díspares, sem nada de épico em si mesmas, das quais entretanto depende a força do andamento do conjunto. Assim, a exposição combina observações avulsas, glosas do bate-boca ideológico mundial, uma tese a contracorrente sobre a dinâmica geral da atualidade, revisões críticas de noções de establishment, à direita e à esquerda, análises econômicas, rápidos excursos históricos, e um panorama -este vertiginoso, de verossimilhança notável- da devastação planetária trazida pelo progresso recente do capital.
O leitor de Marx terá notado aí algo da composição do "18 Brumário", com a sua grandeza acintosamente cacofônica, seus âmbitos e ritmos muito heterogêneos, tudo em função das revelações do presente, entendido como novidade histórica. Por um lado, a multiplicação dos procedimentos, cada qual dependente de disciplina intelectual e estilo literário próprios, atende a esta noção de um presente complexo. Por outro, ela configura a promiscuidade (no bom sentido) do jornalista, do filósofo, do economista, do historiador, do literato, do agitador etc. no sujeito que busca fazer frente à experiência do tempo, por escrito e para uso do próximo. Diferentemente da epopéia de Marx, que saudava a abertura de um ciclo, a de Kurz é inspirada pelo seu presumido encerramento. Se em Marx assistimos ao aprofundamento da luta de classes, onde as sucessivas derrotas do jovem proletariado são outros tantos anúncios de seu reerguimento mais consciente e colossal, em Kurz, 150 anos depois, o antagonismo de classe perdeu a virtualidade da solução, e com ela a a substância histórica. A dinâmica e a utilidade são ditadas pela mercadoria fetichizadas -o anti-herói absoluto- cujo processo infernal escapa ao entendimento de burguesia e proletariado, que enquanto tais não o enfrentam.

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