São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 1997
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Um quase-discípulo de Machado e Proust

PATRÍCIA CARDOSO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"O Amanuense Belmiro", romance de estréia do mineiro Cyro dos Anjos, chega aos 60 anos relativamente afastado dos dois responsáveis pela unanimidade em sua consagração: o público e a crítica.
Aliada à popularidade, a frequente associação do estilo de Cyro a nomes como o de Machado de Assis e Marcel Proust inscreveu a obra entre os clássicos da literatura brasileira. Mas ser um clássico é coisa por demais complicada, principalmente se levarmos em conta nossa grande atração pelo novo, o que nunca tinha sido, o que não pode ser classificado. De certa maneira, então, pode-se atribuir o semi-esquecimento de "O Amanuense" a um excesso, o excesso de qualidade.
Se uma obra não circula, ela não suscita discussões, não gera interesses por novas possibilidades de interpretação.
A situação tende a agravar-se ainda mais se ela estiver entre aquelas já identificadas como os modelos por excelência de uma literatura de alto nível. É como se nada mais precisasse ser dito a seu respeito: Cyro dos Anjos é basicamente machadiano pela ironia e proustiano pelo apego aos assuntos da memória. Essa associação tão imediata, ainda que válida, pode muitas vezes criar para o autor uma imagem excessivamente presa aos modelos, levando-nos a ver sua obra mais como uma repetição de fórmulas consagradas do que o diálogo com os mestres em que ela se constitui, e que é, de fato, o real motivo de sua qualidade.
É inegável a presença do que poderia ser identificado com a ironia machadiana em "O Amanuense Belmiro". Ao narrar sua história, o personagem Belmiro Borba oferece uma visão de si mesmo marcada pela autocrítica, cuja função parece ser não apenas reforçar o controle que o narrador tem sobre todas as situações em que se envolve, mas também marcar a distância que o separa dos acontecimentos; como se a vida -a sua e a dos amigos- não fosse artigo de tanto valor que merecesse maiores preocupações ou reflexões.
Seguindo a trilha da ironia, o amanuense diz de si próprio e da obra que pretende escrever: "Posta de parte a modéstia, sou um amanuense complicado, meio cínico, meio lírico, e a vida fecundou-me a seu modo, fazendo-me conceber qualquer coisa que já me está mexendo no ventre e reclama autonomia no espaço. Ai de nós, gestantes". Levando ao extremo a comparação do processo de criação da obra com o da gestação, o narrador reveste-a de tal ridículo que se torna impossível levá-la a sério. Esse e outros comentários podem levar o leitor a pensar que haja nesse narrador maior dose de cinismo do que de lirismo. Mas essa é uma conclusão que envolve riscos e requer muita atenção.
E talvez seja a exigência da atenção do leitor ao discurso do narrador o elemento que nos permite filiar de modo mais interessante a obra de Cyro dos Anjos à tradição machadiana. Seu excesso de franqueza e sua disposição de contar sempre a verdade -quando não de rir de si mesmo sem constrangimento-, elementos suficientes para fazer de Belmiro um narrador confiável, revelam-se um ardil para impedir o leitor de conhecê-lo.
E, ainda que conhecer Belmiro por completo seja praticamente impossível, a leitura "desconfiada" de sua narrativa pode ao menos ajudar o leitor a perceber algumas relações entre o cinismo e o lirismo com que o narrador se caracteriza. Se, em uma leitura "crédula", o leitor tende a ver o cinismo predominando sobre o lirismo, uma leitura "desconfiada" promoverá uma mudança de tendência. O leitor poderá sentir-se diante de um personagem que, com seu comportamento cínico, esforça-se por esconder o que se poderia chamar de uma natureza lírica.
Mas esse esforço de Belmiro pode revelar muito mais do que um caso pessoal isolado, remetendo diretamente a uma discussão que marcou profundamente a intelectualidade brasileira dos anos 30: a necessidade de engajamento na causa política. Tendo que se decidir entre direita ou esquerda, Belmiro vê a marca de sua individualidade -que ele chama de lirismo- correndo risco de desaparecer. Diante desse risco, sua opção é colocar em segundo plano, por meio do discurso que engendra, essa sua característica.
Sofrendo as pressões dos amigos para que se decida pela direita ou pela esquerda políticas, o narrador fará a seguinte observação: "Não é possível ser-se tudo, ao mesmo tempo? E, se sentimos que a verdade e a contradição foram semeadas em todos os campos, como poderemos definir-nos? Tudo o mais é violência ao espírito". O romance ganha em complexidade quando o leitor fixa o olhar além da superfície do tom cínico e irônico adotado pelo narrador.
O mesmo acontece em relação à influência proustiana, que se faria sentir no romance por meio da ligação quase obsessiva do narrador com seu passado. Longe de reproduzir, em "O Amanuense Belmiro", a trajetória do narrador de "Em Busca do Tempo Perdido", Cyro dos Anjos o utiliza -e à sua experiência- como mote para desenvolver os conflitos vividos por Belmiro.
O esforço por desvencilhar-se de seu lirismo deve ser acompanhado também de um esforço para neutralizar qualquer importância que o passado possa ter na vida de Belmiro. No mundo político em que ele deve entrar não cabe a experiência individual (que é também coletiva, uma vez que seu apego ao passado diz respeito a um universo rural cujas leis são muito diferentes das leis da Belo Horizonte, onde ele agora vive), fixada pela memória.
Nesse sentido, é significativo que oscile bastante, ao longo da narrativa, o ponto de vista do narrador em relação à sua busca do tempo perdido. Belmiro começa por dizer que a origem de sua narrativa seriam notas que posteriormente viriam compor um livro de memórias. Nesse início, o passado tem uma feição idílica e parece não oferecer qualquer perigo ao narrador. Pouco a pouco, ele deixa o passado de lado para transformar suas notas em diário -coisa do tempo presente- e, quando há referência ao passado, este ganha contornos muito sombrios, aparecendo como um contraponto que torna a exigência de engajamento do presente ainda mais assustadora.
Ao contrário do narrador proustiano, para quem a descoberta da permanência do passado no tempo revela-se positiva, porque o salvaguardaria das inevitáveis mudanças do espaço, Belmiro não suporta que Vila Caraíbas, sua terra natal, não seja mais o que havia sido. E, quando esse narrador constata que "as coisas não estão no espaço; as coisas estão é no tempo", não é com alívio ou alegria que ele anuncia que devemos buscá-las "na duração do nosso espírito", mas com um misto de angústia e decepção.
E, se para o narrador proustiano o simples movimento em direção ao passado já vale a pena, para Belmiro, voltar-se para o passado remete a uma dupla perda, que inclui o próprio passado -cuja recuperação revela-se problemática- e invade o presente, cujas exigências não comportam tal movimento. Decepcionado e angustiado, sem definir-se entre cinismo e lirismo, Belmiro chega ao fim da narrativa dizendo "já não preciso de papel, nem de penas, nem de boiões de tinta. (...) A vida parou e nada mais há por escrever".
Mas, se o narrador não faz sua opção, a nós leitores cabe fazê-la: entre Machado e Proust como matrizes para "O Amanuense Belmiro", sem dúvida a melhor escolha é mesmo Cyro dos Anjos.

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