São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 1997
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Um clássico do anticânone

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Isidore Ducasse (1846-1870), o autobatizado Conde de Lautréamont, era um garoto (do que mais se pode chamar, nos dias que correm, a alguém que morreu aos 24 anos?) nascido, de uma família francesa, no Uruguai (como dois outros poetas franceses: Laforgue e Supervielle), país onde passou a primeira metade da vida, antes de ser mandado à França para continuar seus estudos.
Suas obras completas -os seis "Cantos de Maldoror" e as duas sequências mais breves, chamadas "Poesias"- cabem num volume de tamanho médio. Trata-se de textos em prosa, escritos pouco tempo depois de, primeiro, Aloysius Bertrand e, em seguida, Baudelaire terem consagrado a idéia do "poema em prosa". Os "Cantos" são, de longe, sua criação mais célebre, enquanto as poucas páginas das "Poesias" formam, na medida em que parecem contradizer o espírito de "Maldoror", uma espécie de apêndice incômodo que tem dado lugar às mais desencontradas interpretações: seriam uma manifestação de arrependimento? deveriam ser lidas numa chave paródica? etc.
A tradução brasileira dessa obra, realizada com esmero pelo poeta paulista Claudio Willer, é, na realidade, a terceira edição dos "Cantos" (a primeira foi publicada em 1970), acrescida dos poemas e de um aparato crítico a esta altura não apenas útil, como indispensável. Willer, vale a pena observar, além de tradutor de Antonin Artaud e Allen Ginsberg, é um poeta reconhecidamente influenciado pelo surrealismo e é à luz de tal background que se podem encontrar pelo menos em parte as raízes de sua paixão pela obra em questão. Afinal, foram os surrealistas e, entre eles, o próprio André Breton, que elevaram esses textos difíceis de classificar e seguramente anticanônicos à categoria de clássicos.
É o tradutor mesmo quem, na sua introdução, enfatiza o caráter de exceção dos escritos de Lautréamont, comparando-os a outras tantas obras que tiveram que esperar anos ou mesmo décadas para se tornarem conhecidas e reconhecidas. Pode-se identificar nessa característica o sentido forte da expressão "marginal" quando aplicada à literatura: uma obra marginal seria aquela que, à margem das convenções de sua época, requereria um certo prazo para poder ser compreendida pelos leitores. E particularmente os "Cantos" conformam-se a tal definição, pois são, para os padrões da prosa ou da poesia francesa de meados do século passado, mesmo após o terremoto baudelairiano, algo, no mínimo, inesperado.
A crueldade sádica que neles se manifesta quase histericamente, bem como a subcorrente de homossexualismo, além de uma iconoclastia peculiar, já foram devidamente esmiuçados por gerações de exegetas e, obviamente, não detém mais a capacidade de chocar a quem quer que seja, salvo, sem dúvida, os ideólogos da correção política (que melhor fariam colocando-os em seu "Index") e, quem sabe, os epígonos tardios do rousseauísmo. Esses elementos decorrem provavelmente da influência onipresente de Byron, ou melhor, de uma certa leitura francesa que poderíamos chamar de "byronismo" (que fez escola até mesmo entre os românticos brasileiros). Embora mais que de exceção, excessivas, tais características já tinham mesmo, à época de Ducasse, conquistado uma parcela de respeitabilidade e não dariam conta da fama póstuma de sua obra.
O que em "Maldoror", por assim dizer, escandalizava ou chocava era menos seu aspecto temático do que o estilístico, pois era neste que o autor punha em cena a maior de suas perversões: a perversão das normas de decoro e bom gosto que vigoravam (e, numa medida surpreendente, ainda vigoram) no uso da língua literária francesa. Um livro pequeno, mas importante, resultado das investigações da estudiosa brasileira Leyla Perrone-Moisés e (postumamente) do uruguaio Emir Rodriguez Monegal, "Lautréamont Austral", propõe algumas das mais interessantes explicações formuladas até hoje.
Assim, o Uruguai e a língua espanhola não teriam sido tão irrelevantes à formação do escritor francês quanto se supunha, e seu estilo teria nascido, em boa parte, de uma revolta contra o manual de retórica que havia sido forçado a estudar. Este manual, escrito por um espanhol classicizante, condenava com vigor o barroquismo, e o jovem Ducasse, para fazer oposição àquele, teria tomado o partido deste, usando na sua obra recursos tanto mais estranhos na medida em que pertenciam a uma época anterior, a uma tradição diferente e a uma outra língua. Com isso, ele acabou merecendo um lugar de pioneiro entre aqueles que, consciente ou inconscientemente, passaram, com intensidade cada vez maior, a buscar em contextos distintos e distantes elementos inesperados com a intenção de subverter seu próprio ambiente.
A poesia em prosa de Ducasse/Lautréamont pertence incontestavelmente ao círculo restrito de textos com os quais alguns poucos franceses, geralmente jovens -Nerval, Baudelaire, Rimbaud, Corbière, Laforgue e Mallarmé-, criaram, na segunda metade do século 19, as bases sobre as quais o século seguinte edificaria muito de sua melhor literatura. A centralidade desses textos e sua importância se reafirmam, até mesmo no Brasil, com as novas traduções, edições e/ou reedições que saem a cada década. Só nos anos 90 tivemos os volumes de Rimbaud de Augusto de Campos e Ivo Barroso, um de Corbière, o Laforgue de Luis Carlos de Brito Resende, novas versões de Mallarmé feitas por Julio Castañon Guimarães e uma edição completa de Baudelaire. Com o Lautréamont de Claudio Willer, o círculo não tanto se fecha quanto volta a se abrir para as novas leituras e interpretações que o século que vem nos reserva.

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