São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 1997
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Passado e futuro simultâneos

IVANA BENTES
ESPECIAL PARA A FOLHA

O que foi o cinema e para onde ele vai? Uma questão ampla e difícil que transformou a celebração dos seus cem anos numa, igualmente eufórica, cerimônia de adeus. Simultaneidade do futuro e do passado que os ensaios reunidos de Arlindo Machado exploram num trabalho aplicado de revisão histórica e de indagação sobre esses rumos que o cinema poderá tomar.
O passado se chama "o cinema antes do cinema", a origem do cinema ou ainda o cinema das origens, uma série de estudos em franca expansão que restitui a novidade radical e originalidade desse primeiro cinema.
O futuro se chama vídeo e imagens digitais, vertente contemporânea de análise da hibridização das imagens, vindas de diferentes origens e que dialogam com o cinema. Antes do cinema e depois... Dois momentos de indeterminações e uma mesma virtualidade: tudo o que o cinema foi e poderia ter sido, antes de Griffith e da instauração de um modelo narrativo clássico, e todas as possibilidades que se abrem hoje com o vídeo e as imagens digitais.
Ou seja, o cinema narrativo clássico, o modelo americano sobredeterminado, é o grande ausente da coletânea de ensaios de Arlindo Machado, que prefere, de forma acertada, trabalhar com um conceito expandido de cinema. O cinema como virtualização do passado e do futuro, um campo do imaginário: a idéia de cinema perseguida pelo pensamento humano e expressa de diferentes formas e por meio de diferentes dispositivos tecnológicos, antes e depois do "cinema".
Desta forma, o autor pode pensar tanto as formas mágicas que antecederam a invenção do cinema, todo um imaginário "cinematográfico" presente nas sombras chinesas ou na caverna de Platão, quanto as formas tecnológicas contemporâneas e suas "poéticas", sem com isso deixar de contextualizá-las historicamente ou aproximar os extremos.
Machado se movimenta com segurança para os dois lados, numa escrita analítica e ultra-informativa. Revisão e análise histórica que marcam os primeiros ensaios, nos quais traça o momento de gênese desse imaginário, nos quais o "cinematográfico" surge em diferentes e fascinantes dispositivos: lanternas mágicas, teatro ótico, fantasmagorias, cronofotografia, quinetoscópio. Um "cinema" que cabia tanto no propósito científico de pioneiros como Marey e Muybridge quanto no "horizonte de mágicos, videntes, místicos e charlatães". Evocação e produção de um imaginário feérico, mágico, excêntrico inscrito, como sublinha o autor, em cada nome exótico que batizava as salas escuras do século 19: Phantasmagoria, panorama, Cosmorama, Diaphanorama, Kineorama...
Antes de ser inventado, o cinema já era desejado num mundo que erotizava o olho com suas máquinas de espiar. Cinema das origens, desejado e desejante, que só recentemente começou a ser estudado no Brasil ("O Primeiro Cinema", de Flávia Cesarino da Costa, é importante referência). Estudos que vêm reconstituir um outro cinema e episteme, nada "primitivo", mas "jubiloso e sujo", atravessado pelo feérico e pelo grotesco, e radicalmente afastado da vertente narrativo-industrial, afastamento que o colocou durante muito tempo à margem da história.
Nesses artigos sobre a contemporaneidade, Machado retoma algumas questões delicadas: definições muito rígidas do que seria a "natureza" do cinema e do vídeo, ou que tipo de imagens e procedimentos seriam mais "adequados" a um e outro. Definições e regras que o próprio autor se apressa em minimizar, lembrando que "o que faz um verdadeiro criador é justamente subverter a função da máquina".
E bastaria o exemplo de Godard ou Peter Greenaway, cujo cinema se apropria inteiramente da estética do vídeo, da televisão e da hipermídia, para abandonarmos qualquer tentativa de "determinar" rigidamente onde acaba o cinema e começa o vídeo e vice-versa. O mesmo vale para a tentativa de definir a "natureza" da imagem digital. O contra-exemplo de Machado é o surpreendente "Smoking/No Smoking", filme de Alain Resnais, uma narrativa combinatória com 24 possibilidades diferentes de ocorrência, que é um dos mais expressivos usos de idéias, como as de interatividade, complexidade e hipertexto, feito ironicamente por um mestre do cinema.
No embate das idéias, Arlindo Machado toma uma postura lúcida e crítica diante de certo farfalhamento teórico produzido por analistas do fim de tudo, como Baudrillard, com seu surfe filosófico, ou os prognósticos negros de um Paul Virilio. Na sua análise exemplar sobre a Guerra do Golfo, "telejornal em tempo de guerra", o autor se afasta das blagues retóricas de um Baudrillard, que afirma que a Guerra do Golfo "não existiu, foi um efeito de mídia" (Baudrillard é usado nas universidades brasileiras para se interpretar de Glauber aos sem-terra, mas a simples existência de países como o Brasil desqualifica 80% do que ele propõe como teoria).
Machado também não compartilha da visão paranóica de um Virilio, que viu em jornalistas perplexos e informações desencontradas a mão toda poderosa e controladora do Pentágono, postura que "acaba por eliminar da cena política as suas contradições e as brechas que tornam os eventos permeáveis à intervenção". Vertente política e lúcida desses ensaios tecno-estéticos que indicam um autor que arrisca tomar posições numa área em que o deslumbre tecnológico tem como contrapartida a subserviência teórica.

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