São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 1997
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Uma bússula sem norte

Ironia predonima em 'Viagem ao Extremo Sul da Solidão'

GUIOMAR DE GRAMMONT
ESPECIAL PARA A FOLHA

O enterro da mãe do narrador -que abre o romance "Viagem ao Extremo Sul da Solidão"- sugere que o leitor irá encontrar uma atmosfera introspectiva, melancólica. Contudo, apesar da miséria existencial dos personagens e da referência ao "Estrangeiro", de Albert Camus, o que predomina no livro é a ironia, única redenção possível na aturdida geografia dos reveses de nossa época.
O protagonista é o cronista desse mundo em dissolução, o irreverente "flâneur" de um fim de século que é também fim de milênio, um tempo em que se multiplicam a barbárie e o desencanto. Procura tratar de temas vitais para a contemporaneidade: o totalitarismo; a extinção das utopias; o paroxismo da sociedade virtual; o esoterismo crescente; a Aids e, enfim, a viagem pela insegurança de um mundo sem certezas.
No devaneio do narrador, um personagem chega a pedir a Deus uma segunda chance para o socialismo mostrar a que veio, revisando os erros do passado. A nostalgia da utopia se instala não mais sobre as ideologias, mas sobre a era de romantismo inconsútil, em que se acreditava nas grandes transformações políticas e sociais.
Paris é o cenário impregnado pelo aroma de um passado mítico, antes, símbolo da era das Nações, agora, da internacionalização da cultura. Cidade-mundo onde perambulam personagens de inúmeras nacionalidades, em busca de uma identidade perdida. Jovens hedonistas, seduzidos pelo "ecstasy", que um dia comporão a elite dirigente de seus países, misturam-se a observadores niilistas e perplexos como o narrador. É uma geração indiferente, mas que nem sequer parece viver o tédio como opção existencial. "Geração perdida", em busca da glória e da literatura, ou simplesmente "geração vazia"? É a pergunta que paira no romance. "Não somos ninguém, Marcel", dirá o amigo Juan, que persegue sem cessar uma mulher-miragem, uma "presença-ausência", pelos bares e ruas parisienses. "Não temos identidade. Transitórios, marionetes transparentes, andamos de um lado para outro, arrastando fragmentos risíveis de nossas próprias biografias."
O narrador e seus amigos navegam à deriva entre o conformismo e o olhar cético dos que possuem a memória de uma luta que não conheceram e que, não obstante, sabem inglória e vã. Na aventura do narrador, "sucesso" e "fracasso" se confundem, são os termos de uma mesma errância em busca de um sentido, seja personificado em uma mulher, em uma canção sobre a saudade ou em um belo jantar. A carne etérea do livro é o desejo de um nada inapreensível que possa se oferecer como objetivo.
A viagem ao extremo sul se alegoriza em histórias, ou encontros que remetem a histórias. O foco narrativo se desloca da humilde serviçal de um possível nazista, para a misteriosa caçadora de "anjos da morte", idealizada na narrativa do professor de história. Este, que outrora foi mestre, talvez exemplo a ser seguido, agora é ex-rebelde das causas perdidas, bússola sem norte, desfeita no oscilar de suas próprias contradições. Em tom de parábola, com auxílio da ironia e do paradoxo, surgem as alegorias da sociedade virtual e do profeta que investe contra o mundo das imagens.
O prazer da leitura é crescente e recebe sua máxima voltagem, sobretudo nas passagens em que o narrador vivencia situações com amigos e com as mulheres. Descrente de toda possibilidade maniqueísta de transformação, o protagonista afirma que "o utópico", para ele, são as mulheres, único tema capaz de incitá-lo à "violência radical dos agitadores sociais". Se a referência a autores franceses como Camus e Céline é recorrente, o estilo, apesar da pulsação e da sensualidade latinas, está mais para o de Thomas Mann: na elegância das metáforas, no tempero irônico e no tratamento ambicioso dos temas da política e da literatura em diálogos complexos.
Escritor de talento admirável, Juremir Machado da Silva com certeza evoluirá no sentido de encontrar um maior equilíbrio entre a recusa da linearidade e a organicidade da obra, um problema com que nos debatemos todos nós, da geração pós-vanguardas. A viagem do protagonista é a literatura, ainda que ele afirme abandoná-la ao partir. É uma viagem sem partida e sem chegada, simultaneamente vivida e vislumbrada no além, no país da indiferença e da solidão. É o flanar por um mundo que, como na leitura que Borges faz de Heráclito, é rio e espelho. Nessa superfície a imagem do protagonista se projeta, se fragmenta e se desfaz.

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