São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 1997
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O pensador da crise

Continuação da pág. 5-4

"Há grande perigo que a China, no início do século 21, mergulhe numa guerra civil"

Folha - Quais serão os reflexos da crise econômica na política da região? É possível prever um endurecimento dos regimes de força ou um caminho democrático?
Kurz - A crise econômica nunca foi uma boa época para a "abertura democrática". Se as instituições financeiras internacionais não conseguirem, ao menos temporariamente, estabilizar os "tigres", é muito provável que o regime paternalista se petrifique numa nova ditadura. As próprias ditaduras, no entanto, estão à mercê da pressão do mercado mundial e do capital financeiro transnacional. A longo prazo, caso recrudesça a crise, é de se prever no Sudeste Asiático a ruína de todo o sistema político -obviamente não da mesma forma que, por exemplo, no Afeganistão ou na Somália, mas num processo semelhante.
Folha - Por que a economia de Hong Kong enfrenta problemas? Se trata apenas da questão de sobrevalorização do mercado imobiliário? Como a China poderá intervir no problema?
Kurz - Em Hong Kong, há inúmeros fatores: por um lado, os mesmos problemas e dependências estruturais que nos outros "tigres", aliados a uma moeda artificialmente supervalorizada. É muito difícil que a China esteja em condições de, num cenário incerto, pulverizar suas reservas de modo algum inesgotáveis na estabilização da moeda de Hong Kong. A próxima onda de especulações com o dólar de Hong Kong já é previsível, e a moeda acabará por não resistir. A supervalorização especulativa do mercado imobiliário, a exemplo do boom e da subsequente quebra imobiliária, também seguem o mesmo modelo que o da Tailândia e, anteriormente, o do Japão -essa crise do mercado imobiliário ainda não terminou e ainda terá grandes consequências. Por outro lado, uma insegurança latente (e não menos essencial) paira sobre o status de Hong Kong. Embora a China tenha dado o seu aval ("Um país, dois sistemas"), ele de nada valerá quando a própria China for varrida pela crise e alterar o regime.
Folha - A China não está imune a essa crise do capitalismo?
Kurz - A maior crise na Ásia, num futuro próximo, será a chinesa. Todos elementos da crise nos "tigres", inclusive a bolha especulativa no mercado acionário e imobiliário, encontram-se também na China, só que em dimensões muito maiores. A isso acresce que a economia chinesa está internamente dilacerada: de um lado, os setores da indústria exportadora; de outro, a capenga indústria interna do Estado e uma enorme massa de terras aráveis relativamente subaproveitadas, em escala global. Ou a China dá impulso à industrialização exportadora, sobretudo nas províncias do sul -e aí será forçada a abrir seus próprios mercados, fechar as indústrias estatais nas regiões norte e central e expor sua agricultura, mais do que até agora, à concorrência mundial-, ou então persiste na subvenção à indústria estatal e protege os seus mercados- e aí terá de desistir, a longo prazo, da indústria de exportação. Em um e outro caso, o saldo só poderá ser um gigantesco abalo social. Há grande perigo que a China, no início do século 21, mergulhe numa guerra civil.
Folha - E a Rússia?
Kurz - A Rússia, um dos maiores países do mundo e na posse de armas atômicas, encontra-se à beira do colapso econômico e é, efetivamente, dominada pela máfia, com um presidente irresponsável à frente. Na economia externa, ela é um exemplo clássico de país do Terceiro Mundo -arruinado e exportador de matérias-primas. Mas as infra-estruturas antiquadas para a produção e o transporte de petróleo e gás natural são precárias e causam danos catastróficos à ecologia. Capital monetário para o saneamento não se acha disponível. Grande parte da população foi submetida a um rápido empobrecimento, entre eles os oficiais do Exército e os seus subordinados. Só a letargia e falta de perspectivas impediram, até agora, levantes maiores do que a guerra da Tchetchênia. No futuro, a Rússia será um foco ainda maior de desassossego econômico e político.
Folha - Quais serão os impactos da crise para a economia dos EUA? É certo considerar que a origem da crise está nos descompassos da economia norte-americana? Ela poderá, de alguma forma, abalar a hegemonia política e econômica do país no mundo?
Kurz - Hoje o domínio absoluto dos Estados Unidos é marcado exclusivamente pelo poder de fogo e a presença global de seu aparato militar. Esse poderio militar há muito não se funda mais na economia e, por isso, será convertido em fraqueza. Toda potência mundial armou-se até curvar sob o próprio peso (a última delas foi a União Soviética), e os Estados Unidos não escaparão a tal destino. Sua máquina militar e seu consumo são em grande parte financiados pelo exterior. Todo mundo contabiliza excedentes comerciais com os Estados Unidos, que assim acumularam déficits por toda parte e o maior endividamento externo do mundo. O centro desse desequilíbrio global é o circuito deficitário do Pacífico, que conjuga a economia norte-americana, o Japão e os "tigres". Hoje em dia, os Estados Unidos não são essencialmente mais fortes que outros países ocidentais acometidos pela "gripe asiática". Porém, tão logo os bancos, fundos e investidores institucionais dos países asiáticos, com excedentes nas exportações, forem forçados a vender, em grande estilo, os empréstimos estatais americanos, presenciaremos o "crepúsculo" da última potência mundial.
Folha - Quem sairá mais forte da crise? Que países?
Kurz - Quem seria capaz de sair de crises como esta como vencedor? O Japão, os "tigres", a América Latina e o Leste Europeu surgem como os grandes perdedores, mas os Estados Unidos poderiam se tornar, em breve, perdedores tanto maiores. A União Européia talvez perca um pouco menos, mas não ganha nada; a África e o restante da Ásia já se acham, de todo modo, isolados. As noções de "ganhador" e "perdedor" não são de nenhuma valia, pois trata-se de uma crise do próprio sistema mundial, no qual todos se encontram numa situação de inevitável dependência recíproca.
Folha - Será exagero esperar que a crise pode resultar em certo fechamento das economias nacionais?
Kurz - Daqui em diante, provavelmente em intervalos cada vez mais curtos, testemunharemos crises nos mercados financeiros globais, que terão de ser manipuladas e proteladas a um custo cada vez mais elevado (como foi o caso recente do Japão). Mas o resultado dessa instabilidade do sistema financeiro não será o fortalecimento da economia interna; antes, pelo contrário, ela levará a uma corrida tanto mais acirrada pela concentração do capital transnacional. Não há mais retorno às velhas e relativamente fechadas economias nacionais. Na maioria dos setores da economia, o capital já não é capaz de dar rendimentos apoiado numa simples base nacional. No atual standard de produtividade, são utilizadas tão poucas pessoas para a produção capitalista que os mercados internos definham. Por isso, as empresas buscam refúgio nos mercados mundiais. A globalização é o resultado de uma crise da economia nacional, não o inverso. Com as crises financeiras, uma parcela ainda maior da população global é desviada para o setor informal, mas isso não pode ser caracterizado como retorno às estruturas econômicas nacionais, na acepção tradicional.
Folha - Os regimes de força serão favorecidos?
Kurz - O sociólogo anglo-alemão e grande liberal europeu sir Ralf Dahrendorf teme novamente que o século 21 promova o regresso generalizado aos regimes autoritários. Isso, porém, seria resultado do próprio liberalismo econômico, que sempre conduziu à catástrofe social e prefere, por isso, nas situações de perigo, os regimes ditatoriais. Mas o que se aplica ao Leste Asiático vale também para o resto do mundo: nenhuma ditadura, por mais autoritária que seja, pode pôr fim à crise da lógica capitalista e do sistema mundial dela decorrente. Testemunhamos a erosão geral da política, pois os mecanismos de regulação dos Estados nacionais não funcionam mais. A farsa da política como "circo da mídia", com suas figuras cada vez mais obscuras, é apenas um estágio transitório rumo à barbárie. Se não se detiver o curso do capitalismo, logo seremos dominados por bandos míticos de salteadores, incapazes de manter o nível da civilização.
Folha - Quais serão os resultados da crise na América Latina? Brasil, Argentina, México e Chile sofrerão impactos diferentes?
Kurz - O motivo imediato da crise, a especulação com moedas "politicamente" supervalorizadas, atinge tanto a América Latina quanto os "tigres". No entanto, o México já deixou para trás a sua primeira grande crise de finais de 1994, ao passo que, para o Brasil (e também para a Argentina), ela ainda se acha à espreita. Seria bem possível que, no caso da estabilização (e não "solução") do cenário asiático, a próxima grande investida fosse contra a moeda brasileira. Desde a crise do peso, o México passou por uma profunda recessão, muitas empresas tiveram de fechar e o salário real caiu em 20%. Essa queda repete-se agora no Brasil, depois que o governo, para defender o Real, elevou drasticamente tanto juros quanto impostos e cortou as despesas públicas. Caso o Real não possa ser preservado, haverá uma nova crise do peso, e essa escalada poderá alastrar-se. O Chile, num processo deflacionário global como possível resultado da crise financeira, poderia sofrer com a queda na cotação do cobre, já que esse metal, apesar de todos esforços de diversificação, ainda ocupa uma posição de destaque na balança comercial chilena.
Folha - Haverá turbulência política em função de desastres econômicos? As vitórias das oposições no México e na Argentina são reflexos de um movimento contra o modelo neoliberal?
Kurz - As fortes turbulências políticas continuarão enquanto as forças políticas de relevância não assumirem uma posição nítida nas questões decisivas e insistirem em fazer seus rapapés diante do neoliberalismo. Não creio que o sucesso da oposição no México e na Argentina possa conduzir a grandes mudanças. Mesmo hoje, a linha de pensamento dos partidos de oposição é, por um lado, impregnada ideologicamente pelo passado e, por outro, enfraquecida por uma situação histórica completamente alterada, a que todos se adaptam sem convicção e com oportunismo. A mudança de governo não é mais uma mudança de perspectiva social. Talvez haja, em germe, perspectivas inovadoras nos movimentos sociais, mas isso é aleatório e ainda pouco palpável.
Folha - Há caminho viável para esses países, especialmente o Brasil, fora da doutrina neoliberal?
Kurz - Com a crise e a globalização ascendentes, em todo o mundo desintegram-se os chamados "Welfare States", se é que eles tenham existido. Se a pressão social causada pela pobreza galopante há de ser contida, são precisas novas redes sociais que não operem mais (ou apenas parcialmente) com relações monetárias e, dessa forma, também não dependam da valorização global do capital. A produção de alimentos, a construção de casas, a implementação da infra-estrutura etc. poderiam ser organizadas por grupos autônomos, orientados pelas necessidades próprias, a princípio talvez paralelamente às estruturas do mercado. Estes grupos poderiam também coligar-se em grandes e novas associações de interesse e desenvolver até mesmo redes para além das fronteiras regionais ou nacionais. Isso seria bem diverso da chamada economia informal, que somente representa uma esfera secundária e muitas vezes brutal do dinheiro. Mas, para que a nova rede social possa surgir, recursos materiais têm de estar à disposição. Em geral, especialmente em países como o Brasil, o pressuposto elementar para tanto é uma radical reforma de base, implementada seriamente. Se tal problema não for solucionado e arrastar-se no tempo, a catástrofe social pode assumir proporções inauditas.
Folha - Qual o espaço do Brasil no contexto mundial?
Kurz - Como o sistema capitalista destrói-se pela sua lógica interna, a longo prazo ele não pode ser salvo por seus próprios meios. É claro, contudo, que mesmo na crise existem possibilidades de influenciar o desenvolvimento por meio de ações conscientes. Foi assim que surgiram associações regionais das mais diversas espécies -a globalização não se impõe de forma uniforme. Na Ásia, a cooperação supra-estatal ganha relevo, como na Asean. Contra a resistência dos Estados Unidos e do FMI, os Bancos Centrais do Leste Asiático planejam criar o seu próprio fundo de defesa, para mitigar as crises financeiras. Na América Latina, a cooperação, apesar do Mercosul, ainda parece engatinhar. Devido a suas dimensões continentais, ao volume de sua população e à sua potência industrial, o Brasil desempenha um papel único na América Latina, tanto para o desenvolvimento de novas formas de práxis social e de reforma agrária quanto para a cooperação supra-estatal. Do Brasil dependerá se a América Latina terá voz ativa na crise do sistema global ou será um joguete nas mãos da "tríade".

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