São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 1997 |
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O Estado imoral Quem pensa em democracia e em justiça social no Brasil tem que lutar pela mudança radical do Estado EMIR SADER O governo não está errado começando a diagnosticar a crise brasileira pelo Estado. Temos um Estado imoral, que arrecada pessimamente -metade dos impostos é sonegada, cobra-se mais dos que têm menos- e gasta horrorosamente -mais em juros da dívida e no Proer do que em educação e saúde-, prestando péssimos serviços. O problema está na forma de entender suas relações com a sociedade. A crise do Estado é apenas a ponta do iceberg da crise social, política, econômica e cultural da sociedade brasileira. O governo tende a pensar o Estado no seu sentido mais estrito, como aparato institucional, separado da sociedade e contraposto a ela, na visão mais ortodoxamente liberal, que opõe o Estado à sociedade civil e ao mercado. O atual presidente repetia, em sua gestão como ministro, que "a economia vai bem, o Estado é que vai mal", aderindo às teses (neo)liberais da moda. Assim, o Estado fica sendo não só o "locus" dos problemas, mas o único responsável por eles. O resultado é que os projetos de reforma do Estado propostos pelo governo se desligam totalmente dos temas da democracia e da justiça social, tendo como objetivo o corte de gastos e como consequência a destituição de direitos. Cada projeto pode ser traduzido na quantidade de recursos que o governo pensa economizar e na quantidade de direitos que pretende abolir. Quando manda funcionários embora, o governo não pensa na qualidade do atendimento ao público (em especial aos de mais baixa renda), mas na economia que imagina fazer. É o melhor exemplo de uma concepção estrita do Estado como aparelho institucional. Estado mínimo significa mercado máximo -isto é, desregulação extrema da economia e, por ela, das relações sociais, erodindo as bases da democracia, na qual a cidadania decide, em lugar do mercado e dos especuladores, seus destinos e os da sociedade. O Estado é o Estado da sociedade. Reflete, condensa e articula as relações sociais e políticas. Assim, o Estado que surgiu do pacto de elite que terminou com o colonialismo -mas desembocou na Monarquia, mantendo o escravismo- foi oligárquico, espelhando o país do século passado. Foi assim que os pactos de elite que costuraram a história brasileira mantiveram o direito de cidadania reservado a uma minoria, subsidiando o capital e os setores funcionais à sua reprodução. Assim, o regime político que sucedeu à ditadura não surgiu à imagem e semelhança da campanha das diretas, mas do compromisso com o PFL, mantendo o monopólio da terra, dos bancos, dos meios de comunicação, das grandes indústrias e do comércio. Quem pensa em democracia e em justiça social no Brasil -isto é, no nosso futuro e não no nosso passado- tem que lutar pela mudança radical do Estado brasileiro, para atacar a crise social. Isso deve se dar, em primeiro lugar, contra a privatização do Estado e pela construção de uma esfera pública. Deve-se fazer o Estado deixar de ser instrumento privilegiado de subsídio ao capital para ter na afirmação dos direitos de cidadania seu objetivo central. Para tanto, o Estado não precisa ser proprietário de empresas, mas tem que ser o responsável pelo acesso da cidadania aos bens essenciais. Serviços básicos têm que ser de responsabilidade do Estado -no máximo, concedidos a empresas privadas com contratos limitados no tempo, sob forte controle do Estado e da cidadania organizada. Se o serviço elétrico é transferido para empresas privadas que operam na lógica do lucro, ocorre o que se passa no Rio: quem vive mais longe paga mais, o serviço se deteriora, tarifas sobem. Na lógica da desregulamentação que preside o governo, não há para quem apelar. Em segundo lugar, o Estado deve zelar pela soberania do país -ser dono de empresas estratégicas, para elaborar e implementar projetos nacionais. Em terceiro, deve articular alianças internacionais que permitam a inserção soberana no marco externo. Por último, como filosofia, deve ser eminentemente regulador econômico e social, definindo limites e garantindo direitos. O Estado brasileiro já foi o da oligarquia do café. Passou a ser o das elites industriais e agrárias, governando em nome de um país que excluía trabalhadores rurais, donas-de-casa e todos os que não tinham carteira assinada. Hoje, passou a ser o Estado do subsídio ao grande capital, favorecendo a sua hegemonia, em detrimento da grande massa da população. Suas políticas se concentram na destituição de direitos, reafirmando um Estado imoral, reflexo da exclusão social e da castração dos direitos políticos da cidadania. O governo reforma o Estado para manter e reforçar seu caráter imoral. A reforma radical tem que caminhar exatamente na direção oposta -na afirmação de seu caráter social, moral e político, em função do qual têm que estar suas políticas, a começar pela política econômica. Assim começaremos a reconstruir a democracia brasileira. Emir Sader, 53, é professor do Departamento de Sociologia da USP (Universidade de São Paulo) e autor de "O Poder, Cadê o Poder?" (editora Boitempo), entre outros livros. Texto Anterior: O Brasil na corda bamba Próximo Texto: O filho da Xuxa; Sanção injusta; Ave soberania; Igreja e aborto; Justiça vagarosa; Imprensa livre; Apatia geral; Amigos da onça; Time de aluguel; Sucata; Sindicatos Índice |
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