São Paulo, quarta-feira, 17 de dezembro de 1997
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Amadores satânicos

ANTONIO DELFIM NETTO

A reação produzida pela queda da demanda no setor automobilístico mostra que continuamos o país reducionista da simplificação, do amadorismo e da satanização.
Todos sabem que a política alemã é dominada por dois grandes partidos: o CDU (União Democrática Cristã) e o SDP (Partido Social Democrata), cujas matrizes originais (a cristã e a marxista) ainda que completamente opostas, têm a mesma preocupação com o destino do homem. Aliás, a Alemanha de Bismarck (1871-1890) -por motivos que não interessa discutir- já forçava a construção do capitalismo disciplinado.
À concepção de Marx, do trabalho como expressão natural da realização do homem que levava a uma sociedade coletivista, a Igreja contrapôs a "Rerum Novarum" (1891), a encíclica sobre "as condições do trabalhador assalariado". Nela se encontra a visão de uma sociedade harmoniosa, dentro da qual o trabalhador é respeitado e na qual é "culpa gravíssima", que produz a "vingança de Deus", defraudá-lo de seu "justo salário".
A essa altura o leitor perguntar-se-á: mas o que tem a ver essa cultura de almanaque com nossos problemas atuais? A resposta é: tudo. Como medida defensiva contra a dramática queda da demanda de automóveis, uma empresa alemã -que está aqui desde a origem daquela indústria entre nós- sugeriu, como alternativa de curto prazo, que em lugar de engrossar o contingente de desempregados famintos (1,4 milhão só na área metropolitana de São Paulo), os trabalhadores reduzissem em 20% as horas de trabalho e aceitassem um corte de 20% nos seus salários, cobrados com a diminuição do 13º, de bônus, de participação nos lucros etc. Sugestão tipicamente inspirada na filosofia social germânica e já utilizada pela sua matriz.
Isso bastou para que o governo (com seu R$ 1,1 milhão de publicidade diária) se sentisse incomodado e mobilizasse os "chapas brancas" amadores para afirmarem, convictamente, que a empresa é "tecnologicamente atrasada". A explicação pode ser plausível, mas há controvérsia.
A empresa está localizada na região onde a consciência do trabalhador é mais aguçada e onde eles melhor se organizaram -essa é a tradição alemã- e onde, graças a isso, os trabalhadores têm salários diretos e indiretos consideravelmente mais elevados: eles têm um apoio social muito maior na aposentadoria, na forma de assistência à saúde, à alimentação e ao transporte, porque é assim que funciona a "economia social de mercado" e deveria funcionar a "social democracia". Empresas com outras localizações que "robotizaram" mais depressa e dispensaram pessoal no passado graças ao enorme subsídio de capital que receberam, são tidas como "modernas". Mas quem ensinou a esses amadores que a tecnologia mais adequada ao Brasil (isto é, a "moderna") é a de maior relação capital/trabalho? Em lugar de satanizar a empresa deveríamos analisar com maior cuidado o problema: se não com a inteligência, pelo menos com a misericórdia cristã do Natal.

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