São Paulo, sexta-feira, 19 de dezembro de 1997
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Brasileiros praticam solidariedade inconstante

FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR-ADJUNTO DE OPINIÃO

O termo solidariedade, numa das definições que lhe dá o dicionário Aurélio, significa o "sentimento moral que vincula o indivíduo à vida, aos interesses e às responsabilidades dum grupo social, duma nação, ou da própria humanidade". Pelo menos nessa acepção, a solidariedade saiu do dicionário para ganhar visibilidade social no Brasil há muito pouco tempo, não mais do que quatro anos, quando nasceu a Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida, idealizada pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho (1935-1997). Se é verdade que a Igreja Católica já praticava a filantropia no país de modo sistemático há décadas, foi com a Ação da Cidadania que a solidariedade ganhou publicidade e adquiriu contornos mais laicos e ligados à idéia de cidadania.
Entre as pessoas ouvidas pela Folha, há uma espécie de consenso unindo intelectuais, voluntários de movimentos sociais e autoridades públicas de que a Ação da Cidadania representou uma inflexão na maneira de se lidar com a miséria no país. A socióloga Anna Peliano, secretária-executiva do Comunidade Solidária, órgão presidido pela primeira-dama Ruth Cardoso, acredita que "Betinho despertou a sociedade para a fome e fez com que se visse pela primeira vez o tamanho do problema".
Mas, se ninguém põe em dúvida o impacto inicial desse movimento, o mesmo não acontece em relação à sua eficácia e enraizamento. O sociólogo Pedro Jacobi é uma das pessoas que acredita que a Ação da Cidadania está em processo de desagregação. Professor livre-docente da Faculdade de Educação da USP, pesquisador do Cedec (Centro de Estudos de Cultura contemporânea) e autor de um estudo sobre o movimento em cinco capitais do país, ele diz que em 95, quando realizou o trabalho, "já era visível a erosão da Ação da Cidadania; as pessoas não davam mais alimentos, os resultados já naquela época estavam sendo superdimensionados". A pesquisa serviu para "reforçar a idéia de que no Brasil as ações não têm continuidade, funcionam na base do curto-circuito".
Os números reforçam essa avaliação. Em 93, havia cerca de 5.000 comitês da Ação da Cidadania espalhados pelo país. Este ano, estima-se que são menos de 1,5 mil em funcionamento.
O perfil socioeconômico dos comitês também mudou ao longo dos anos. No Estado do Rio, por exemplo, cerca de 90% dos comitês em 93 eram formados por pessoas das classes A e B; hoje, cerca de 95% pertencem às classes D e E.
Em épocas de Natal, essa composição social se altera, mas sem avançar para práticas permanentes de ação solidária.
Responsabilidades
No Brasil, onde a rigor nunca existiu um tipo de proteção social nos moldes do "Welfare State" -que garantiu saúde, educação, seguro-desemprego e direitos previdenciários à população durante a segunda metade deste século-, a ação solidária vem se dando à margem do Estado, por meio de iniciativas voluntaristas e mais ou menos politizadas que procuram minorar as marcas da miséria.
A secretária-executiva do Comunidade Solidária, Anna Peliano, não acredita que o Estado brasileiro esteja sendo desresponsabilizado de suas atribuições. Na sua avaliação, as parcerias do poder público com a iniciativa privada ou as chamadas ONGs mantêm de pé a idéia de que "o Estado deve ser cobrado e na prática acaba sendo cobrado pela sociedade". Segundo ela, "a solidariedade está se institucionalizando no país".
A socióloga Ana Maria Schindler, que prepara tese de doutorado na USP sobre "As Novas Formas de Filantropia na Sociedade Brasileira Contemporânea", acredita que a questão do que cabe ao Estado e o que pode ser resolvido fora de seu âmbito é "hoje o problema mais espinhoso quando se discutem programas sociais". De qualquer forma, diz ela, nos anos 90, pela primeira vez na história do Brasil, o empresariado começa a atuar na área social de maneira mais sistemática e menos imediatista, desenvolvendo programas de médio prazo voltados para a educação ou a preparação profissional de jovens.
Pedro Jacobi não vai tão longe. Acha que o número de empresários engajados em programas sociais é irrisório e fica muito aquém do tamanho do rombo que o país tem de enfrentar. Para ele, a banalização da palavra solidariedade pode acabar servindo como "cortina de fumaça" para uma sociedade que, em sintonia com o espírito individualista dos tempos atuais, vem se "dessolidarizando".

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