São Paulo, domingo, 21 de dezembro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A mais atual das questões

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Um marido cuja mulher é uma vestal (fontes bem informadas e talvez um pouco otimistas garantem que isso pode de fato existir) acredita firmemente que, feito uma autêntica messalina, ela o trai com todo o mundo. Ele não dispõe de qualquer evidência, de um indício sequer, mas não duvida por um segundo das provas que ele mesmo fabricou e/ou fantasiou. A mulher, por seu turno, sempre maltratada, incessantemente ofendida e eventualmente espancada, ainda assim -a despeito de as vizinhas, as amigas com as quais conversa no cabeleireiro, os próprios pais e irmãos lhe repetirem que o marido é um louco violento, que tudo isso vai acabar mal- crê que os ciúmes doentios dele não passam de uma forma exacerbada (e, para ela, quem sabe, lisonjeira) de amor. Sabemos qual é o final demasiado rotineiro de histórias desse tipo. Conclusão: ambos foram, cada qual ao seu modo (e ela, é claro, mais tragicamente), vítimas do auto-engano.
Saltando da crônica policial às manchetes da primeira página, leremos sobre católicos sinceros e bem-intencionados que, tentando impedir uma menina de 11 anos de abortar o feto decorrente de um estupro, pretendem tornar a humanidade mais feliz aumentando o número de desgraçados e miseráveis indesejados e recompensando, de quebra, o criminoso com a garantia da perpetuação de seu patrimônio genético.
Leremos sobre militantes muçulmanos que, assassinando friamente turistas estrangeiros, arruinando a principal fonte de renda de seu país, gerando miséria, dor, desemprego etc., julgam-se catalisadores do bem comum.
Leremos também sobre um militante judeu cuja contribuição à glória de seu país é abater a tiros o general responsável pela maior vitória militar dos mais de 3.000 anos de história de seu povo. O que têm, todos eles, em comum? São voluntariamente incapazes de perceber o que qualquer idiota perceberia e, aliás, percebe: que estão errados, que os meios de que lançam mão conduzem patentemente a resultados opostos àqueles que sinceramente almejam. Em outras palavras, eles entregam-se jubilosamente ao auto-engano.
Nem tudo, porém, em processos assim é somente desastre. Entre os cardiopatas que moram sozinhos, aqueles que têm um gato, um peixe ou um canário com o qual conversam (sabendo racionalmente que seu mascote não os entende nem responderá) podem contar com uma sobrevida maior. Médicos terminalmente doentes crêem, contra a lógica de sua profissão, que serão curados. A maioria dos mortais, apesar de só ver morte após a vida, apega-se à idéia da vida após a morte. Em decorrência disso, a angústia e o sofrimento se atenuam, e as pessoas que se auto-enganam vivem um pouco mais, um pouco melhor. "A espécie humana", dizia T.S. Eliot, "não tolera muita realidade".
O auto-engano é o tema explícito do novo livro de Eduardo Giannetti, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP, autor de "Vícios Privados, Benefícios Públicos?" e, segundo sua própria definição, pesquisador na área de história das idéias. Não se trata, porém, de um tema qualquer nem é seu livro um elegante tratado filosófico à maneira daqueles que levavam nomes como "Das Vaidades do Mundo" ou "As Ilusões Humanas".
"Auto-Engano" é, isto sim, um ensaio analítico informado pela filosofia da ciência e pela teoria do conhecimento, pela neurociência e pela biologia evolutiva, por uma linhagem de pensadores que, de Hume, passando por Darwin, chega a Nagel e Thomas Kuhn, sem desprezar nem os pré-socráticos, por um lado, nem, por outro, os "insights" agudos de escritores e poetas como Goethe e Dostoiévski, Machado de Assis e Fernando Pessoa. E o tema em questão foi eleito não tanto pelas ressonâncias que provocaria num ouvido convencionalmente moralista (termo que não deve ser confundido com "moral") quanto por resumir, na sua paradoxalidade, os problemas com os quais, na busca do conhecimento, nossos melhores recursos se deparam quando chegam ao seu limite.
Esses problemas podem ser reduzidos à distinção entre cérebro e mente. O cérebro é um órgão composto de células altamente especializadas e é possível entender seu funcionamento, se bem que, ao que parece, ainda estejamos longe disso. E a mente? Não há um acordo verdadeiro nem ao menos no tocante à sua definição. Sabemos, se mais nada, pelo menos o que perguntar a respeito do cérebro: para que serve este neurotransmissor, o que acontece no núcleo daquele neurônio, como é processado tal ou qual estímulo que chega da retina ou do tímpano?
Mas as perguntas sobre a mente são mais estranhas e, a rigor, incompreensíveis ou não claramente formuláveis: por que eu acho chocolate gostoso, ou melhor, o que quer mesmo dizer "o chocolate é gostoso", ou melhor ainda, o que é "gostoso" para mim (e não para você ou para ele)? O que significam, no meu íntimo, bem e mal, o que é precisamente "meu íntimo", de onde me vem a certeza de que ele é "meu" (e não seu ou dele)? Tais perguntas foram muito bem colocadas pelo fundador da semiótica, Charles Sanders Peirce, quando expôs seu conceito de "primeiridade", e é uma pena que o autor não faça a ele nenhuma referência.
É óbvio que a capacidade humana de se auto-enganar individual ou coletivamente, de, forçando um pouco o vernáculo, algumas pessoas "auto-enganarem" outras que se comprazem em serem "auto-enganadas", aponta para o âmago de uma contradição que muitos filósofos acreditavam, auto-enganadamente, ter resolvido e os cientistas não julgam nem sequer passível de formulação.
A tarefa que o autor se propõe não é, portanto, a de formulá-la, mas sim a de descrevê-la, circunscrevê-la, sem deixar de perseguir suas ramificações nas dimensões às quais subjaz como um fator central: a religião, a política e a ideologia, a psicologia, a ética.
Giannetti trabalha com a mais atual das questões e lhe dá um tratamento que é "state of the art", de ponta. Prova disso são as coincidências notáveis entre seu livro e um outro, de autoria do celebrado neurocientista Steven Pinker, do MIT. "How the Mind Works" acabou de sair nos EUA e não poderia ter sido consultado por Giannetti. Ainda assim, o norte-americano não apenas usa exemplos muitas vezes idênticos (por exemplo: o da condutibilidade aumentada da pele de uma pessoa que ouve a própria voz gravada) como também conclui seu livro discutindo as mesmas questões que o brasileiro tematiza -e suas conclusões não são substancialmente distintas.
A única diferença relevante entre as obras está numa especulação ousada que Pinker faz, embora admitindo não ter como demonstrar: segundo ele, nós talvez não disponhamos mesmo em nossa mente e/ou cérebro do equipamento cognitivo necessário para resolver o problema em pauta e, não importa o que façamos, ele seguirá sendo, para sempre, irresolúvel.

Texto Anterior: Obra autobiográfica
Próximo Texto: A coerência ética de Lélia Abramo
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.