São Paulo, domingo, 21 de dezembro de 1997
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A coerência ética de Lélia Abramo

GIANNI RATTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Gostaria de ter pertencido à família dela. Gostaria de estar na foto de página dupla que abre seu livro de presenças: presença de atos e personagens, posturas de vida, criatividade e coerência, de dignidade e altivez polêmica e amor.
Pode parecer presunção de minha parte, mas não é; sinto-me muito parecido com ela, com a lisura de sua vida; com sua coerência ética, com sua indiscutível honestidade.
Há, parece-me, três enfoques básicos para a resenha de um livro: o relacionado ao autor, o de quem o analisa e o do leitor comum.
Está evidente, no primeiro, o respeito e a seriedade com os quais Lélia encara sua personagem: trajetória de uma vida artística coerentemente entrelaçada à sua postura política exige uma auto-avaliação severa, consciente e objetiva. Lélia não duvida um só instante do caminho que inexoravelmente deve e deverá seguir. Nos longos anos italianos, perseguida por uma dupla cidadania, pelo equivocado e criminoso anti-semitismo fascista, pela fome e as doenças, pela guerra e pelas circunstâncias que a impedem de voltar ao Brasil, seu anseio de ser atriz nunca esmorece: os caminhos da vida muitas vezes são como linhas paralelas que fogem, para encontrar-se no infinito.
Vejo, escrevendo, que aqueles três enfoques dos quais falei um pouco antes, fundem-se de forma inevitável num painel do qual ela, eu e os outros nos integramos unitária e sensivelmente.
As circunstâncias profissionais da "gens theatralis" são quase sempre imprevisíveis; no caso de Lélia, a passagem por um grupo amador de língua italiana foi indiretamente responsável pelo convite que ela recebeu para atuar em "Eles Não Usam Black Tie", de Gianfrancesco Guarnieri, interpretação que confirmou nela, revelando-o aos outros, um talento do qual nunca tinha duvidado.
Seus ressentimentos são justos e coerentes, fazem parte de uma natureza para a qual o incorreto, o escuso, soa indecente, e para a qual a grosseria é insuportável. A linhagem dela tem a nobreza da cultura e da sensibilidade de uma família na qual falar de poesia significa falar de amor e a linguagem da arte é o pão de todo dia.
Em sua longa e peregrinada viagem na Itália, ela parece olhar sempre tudo, como aguardando um signo, um convite. Se insere na vida de um país -ela, esquerdista convicta- cuja tônica fascista cerceia e progressivamente castra liberdade e cultura; nessas águas turvas ela consegue movimentar-se, diria, até com desenvoltura. Mas o que ela vê e vivencia a abastece de uma experiência e sensibilidade raras, que aliam-se à sua generosa postura política coerentemente mantida até hoje. Nessa Itália congestionada pela guerra e a presença das tropas nazistas, o assassinato em massa de 336 presos políticos nas tristemente famosas Fosses Ardeatinas (1), as greves do norte da península e a revolta das crianças napolitanas que conseguiram expulsar da cidade as milícias hitleristas devem ter se constituído em elementos de alerta, aperfeiçoando uma postura ideológica até lá talvez mais teórica do que prática. É uma trágica lição que ela levará para o Brasil.
O que me parece extraordinário em Lélia é a capacidade que ela tem de coordenar uma visão estético-crítica que sempre norteará seu trabalho com a postura sociopolítica que até hoje não a abandona, e, o que mais me surpreende, é que em todas as suas atitudes, talvez sem percebê-lo, é luminosamente suprapartidária.
A sensibilidade crítica
"Talvez a TV seja mesmo o veículo que reflete o ser humano contemporâneo. A imobilidade física de quem permanece horas à frente de um aparelho de televisão vendo a passagem veloz de imagens, sem tempo para registrá-las, sem permitir ao cérebro e à sensibilidade qualquer elaboração e reflexão, está levando, insensível mas inexoravelmente, o ser humano a um retraimento de sua capacidade de seleção ou diferenciação, empobrecendo sua imaginação, anestesiando suas reações intelectuais, obliterando seu senso crítico."
Esta mesma sensibilidade crítica que identifica a deterioração do processo criativo do ator e a busca do riso gratuito, do "efeito especial" e da lagriminha catártica por parte de uma burguesia indiferente é exercida quando, em 1978, ocorre a primeira grande greve dos metalúrgicos do ABC e ela é "... levada a acompanhar os movimentos grevistas pela convicção de que surgia alguma coisa de atípico, de único: um movimento operário contra um governo militar que lhe negava seus direitos e de cujo desafio tinha plena consciência. Esse desafio continha, sem dúvida, uma inclinação política, embora ainda não definida, nem mesmo determinada".
É um livro rico, sensível e corajoso, que contém a clara e objetiva noção de uma vida conscientemente realizada: "Não há dúvida de que foi um privilégio ter vivido neste século".
É um livro que deve ser lido e meditado -hoje principalmente- nestes dias em que o descaso pelos melhores valores do homem triunfa, e é aceito por uma maioria consumista ávida de qualquer orgasmo tranquilizante.
Obrigado, Lélia!

Nota: 1. Nesse trágico dia 23 de março de 1944, eu, desertor do exército fascista, estava nas montanhas da Grécia ao lado dos "antertes" (os "partigiani" gregos) e meu amigo Giorgio Labó, depois de longos dias de torturas, foi, nessas Fosses Ardeatinas, juntamente com seus 335 companheiros, assassinado com um tiro na nuca.

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