São Paulo, domingo, 21 de dezembro de 1997
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Os limites da liberdade

ALAIN DE BOTTON
ESPECIAL PARA A FOLHA

É comum sermos estimulados a ter prazer no fato de que vivemos num país "livre". Se não estamos de acordo com as medidas do governo, temos liberdade de criticá-las, e, se quisermos permanecer na cama o dia inteiro, ninguém (ao menos nenhum órgão governamental) nos forçará a sair.
O elogio de tal visão de liberdade foi articulado pela primeira vez, com toda clareza, por John Stuart Mill (1), num texto clássico do liberalismo moderno, "On Liberty" (Sobre a Liberdade), publicado em 1859. Dizia Mill: "A única liberdade que merece este nome é a da busca de nosso próprio bem, segundo nosso próprio modo, contanto que não tentemos privar os outros do seu ou impedir seus esforços para obtê-lo".
Ao voltar o seu olhar para a história, Mill podia ver que os governos muitas vezes censuraram e direcionaram as opiniões da população: eles impediram-na de cultuar certos deuses, obstaram-lhe o sufrágio e, na antiga Esparta, forçaram-na até a exercitar-se regularmente ao ar livre. Tais comunidades antigas sentiam-se no direito, nas palavras de Mill, de "interessar-se profundamente na disciplina física e mental de cada um de seus cidadãos". Mas Mill sustentava que tal intervenção constituía uma flagrante violação da liberdade. Ainda que toda a humanidade, exceto uma única pessoa, acreditasse que o exercício fosse salutar ao corpo, nunca haveria justificativa para que essa única pessoa fosse forçada a mudar as suar idéias. "Todo silêncio é uma presunção de infalibilidade", uma presunção falsa e perigosa, dado que "não existe algo como a certeza absoluta".
Isso nos revela um aspecto fundamental sobre as razões por que Mill defende a liberdade: a liberdade política é o resultado lógico de nossa incapacidade de estarmos absolutamente certos sobre as coisas. O que explica por que ele protestou contra "a pretensão exclusiva, feita por uma parte da verdade, de ser a verdade como um todo", acrescentando que "só por meio da diversidade de opinião, no atual estado do intelecto humano, existe uma oportunidade de jogo limpo em todos os aspectos da verdade".
Essa defesa da liberdade soa tão plausível que não deixa margem a dúvidas. Contudo, se passarmos de Mill a Platão (2), vemos que um dos maiores filósofos do mundo tinha opinião diversa e propunha uma forma de governo que, aos olhos de Mill, teria parecido uma tirania. No Estado ideal de Platão (esboçado na "República"), não haveria vestígio da liberdade pleiteada por Mill. Ninguém teria liberdade de expressar suas opiniões na urna eleitoral, e caberia a terceiros definir qual emprego a ser exercido, onde morar, o quanto estudar e quais os livros a serem lidos (poesia, nunca). Os limites da liberdade seriam definidos pela classe dominante, um grupo não eleito de filósofos cuidadosamente treinados.
Como Platão poderia ter justificado esse governo de sabichões? Precisamente porque não acreditava nas associações pejorativas do termo "sabichão"; porque acreditava que se pudesse, de fato, saber tudo. Claro que não era fácil, somente umas poucas pessoas, em determinado período, estariam à altura, mas, uma vez escalado o cume da verdade e da sabedoria, elas mereceriam ser os governantes absolutos de um país -daí os planos de Platão para um governo de filósofos. Ao usar a lógica de Mill, isto é, que o grau de liberdade permitido acha-se em relação inversa ao grau de certeza disponível, a crença de Platão na possibilidade de uma verdade absoluta resultou numa filosofia extremamente iliberal.
Platão não veria dessa forma -não veria como infração à liberdade o fato de uma pessoa dizer a outra o que fazer ou deixar de fazer, contanto que uma tal intervenção fosse "correta". Aos olhos de Platão, eu não limito sua liberdade se o impeço de beber vinho durante a noite inteira ou de gastar dinheiro em apostas, porque este tipo de coisa é indiscutivelmente prejudicial e porque a liberdade não deve ser associada à liberdade de fazer o que se tem vontade, mas, antes, somente à liberdade de fazer o que é correto. Na famosa distinção de Santo Agostinho, devemos diferenciar a liberdade de fazer escolhas da liberdade de fazer escolhas "certas".
Isso nos revela algo sobre o ceticismo e o relativismo moral de nossa época, na qual os governos abandonaram quase inteiramente a tarefa de guiar as pessoas às escolhas corretas. Ainda que os governantes estejam certos de que é melhor as pessoas lerem Shakespeare em vez de jogar dominó, eles não o alegarão publicamente, com medo de estarem errados. Tal perda de confiança na imposição de rumos à vida das pessoas é decerto um reflexo do quão desastroso foi a maioria dos governos fortes e iliberais. Quando Bertrand Russell defendeu o tipo de democracia moderna referida por Mill, ele não disse que era a melhor forma imaginável de governo, mas, unicamente, que era a "menos ruim", dada a frequência com que governos ambiciosos de chefes supostamente "sábios" terminara em desastre.
As duas visões antagônicas da liberdade esboçadas acima foram articuladas num ensaio clássico pelo filósofo de Oxford Isaiah Berlin (3), no qual ele cunhou os termos liberdade "negativa" e "positiva". Liberdade negativa é, de longe, a mais modesta das duas; é o desejo de ser deixado em paz para pensar e fazer o que der vontade, contanto que os outros não sejam prejudicados (tal como a idéia de Mill). A liberdade positiva, por sua vez, envolve o desejo mais ambicioso -e, em potencial, mais perigoso- de dizer às pessoas o que pensar, com base no conhecimento do que é correto (tal como a idéia de Platão).
Mas por que isso seria perigoso? Afinal, por vezes é uma boa idéia mudar as opiniões das pessoas, se tais opiniões são totalmente insensatas. Berlin admite a hipótese: "É possível, e certas vezes justificável, coagir as pessoas em nome de algum objetivo (digamos, a justiça ou a saúde pública) que elas próprias perseguiriam, se fossem mais esclarecidas, mas que não fazem, porque são cegas, ignorantes ou corruptas". No entanto, continua Berlin, isso torna perigosamente fácil que eu "imagine a mim mesmo coagindo os outros para seu próprio bem. (...) Reivindico, então, o que eles verdadeiramente precisam, para além do que eles sabem. (...) Uma vez que assumo esse ponto de vista, sou capaz de ignorar os efetivos desejos de homens ou sociedades, de amedrontar, oprimir, torturar em nome de suas 'verdadeiras' individualidades". Mesmo a tirania, da França de Robespierre à Alemanha nazista, expressou o desejo de "tornar as pessoas livres" -e matá-las, se resistissem a tais esforços de esclarecimento.
Se alguns filósofos defenderam a liberdade negativa, isto se deu principalmente por causa dos perigos que eles vêem na concepção positiva. Acreditar na liberdade negativa não significa, necessariamente, ser um relativista moral (a filosofia em que ninguém sabe a verdade e em que o seu palpite é tão válido quanto o meu). Contudo ela implica a crença de que há muito mais perigo num sistema político que reserva para si o direito de dizer às pessoas o que fazer do que naquele que geralmente as deixa em paz -embora muitas vezes isso signifique dar às pessoas a liberdade de fazer coisas obviamente tolas (beber a noite inteira, pensar que a Terra é plana).

Notas: 1. John Stuart Mill (1806-1873), filósofo liberal inglês, autor do ilegível "Sistema da Lógica" (1843) e do mais elegante "Sobre a Liberdade" (1859).
2. Platão (428 a.C.-348 a.C.), o maior filósofo grego. Acreditava na possibilidade de alcançar a verdade pela razão. Comparou a ignorância da verdade à vida numa caverna, e a sua descoberta, à emergência para a luz clara do dia. "A República" (388 a.C.), o livro mais famoso de Platão, esboça as suas idéias sobre a organização política ideal de um Estado -uma fantasia de filósofo clássico. O Estado deveria ser governado por filósofos, que sempre saberão o que é certo e serão obedecidos por uma população leal e subserviente. A poesia não será permitida, por medo de que distraia dos assuntos sérios da condição de cidadão.
3. Isaiah Berlin (1909-1997), membro do New College, primeiro presidente do Wolfson College e membro do All Souls. Seus livros incluem um estudo sobre Karl Marx, "A Era do Iluminismo", "Quatro Ensaios sobre a Liberdade" e "Vico e Herder".

Tradução de José Marcos Macedo.

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