São Paulo, domingo, 21 de dezembro de 1997
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Crianças perdem infância e vão à guerra

OTÁVIO DIAS
DA REPORTAGEM LOCAL

Todos os dias, cerca de 250 mil crianças ao redor do mundo, em vez de se levantar para ir à escola, pegam em armas e vão à guerra.
O exército de crianças -superior ao Exército brasileiro (200 mil soldados)- está espalhado por 32 países, tão diferentes entre si como Israel (palestinos nos territórios ocupados) e Angola, Colômbia e Myanma (ex-Birmânia).
As crianças soldados podem ser encontradas tanto nos Exércitos de alguns desses países quanto em grupos armados de oposição.
Em pelo menos 24 países, menores de 15 anos são recrutados, o que é proibido pela Convenção dos Direitos das Crianças da ONU (Organização das Nações Unidas).
O envio de menores para a guerra representa uma violação dos direitos mais básicos das crianças.
Em primeiro lugar, além de colocar suas vidas em risco, elas são privadas do convívio com suas famílias e comunidades numa etapa de suas vidas em que esse relacionamento é essencial.
Em segundo, os jovens recrutas deixam de se dedicar com prioridade ao estudo, o que compromete seu futuro pessoal e profissional.
As crianças soldados também podem ter sua saúde prejudicada e seu pleno desenvolvimento físico comprometido pela alimentação insuficiente e pela exposição a condições sanitárias inadequadas.
Por fim, mas não menos fundamental segundo a convenção, elas perdem o direito de brincar.
As consequências, dizem os especialistas, podem ser drásticas: confusão moral, agressividade, dificuldade de readaptação e de se sustentar na vida adulta.
"Essa crianças têm os valores virados pelo avesso. Tendem a ser agressivas e a não confiar nos outros. Acham que resolvem os problemas com a força", diz a sueca Annalena Andrews, da organização não-governamental Save the Children (Salvem as Crianças).
Sediada em vários países, a ONG publica relatórios quadrimestrais sobre o recrutamento de menores para conflitos armados e é responsável pela estimativa, aceita pela ONU, do número de crianças soldados no mundo.
"Quando a guerra acaba, há um grande número de crianças que não estão preparadas para fazer nada, a não ser carregar uma arma. Em geral, há um grande salto da criminalidade", afirmou Annalena à Folha.
Segundo a ativista, é difícil saber o número exato de jovens recrutas em cada país porque nem os governos nem os grupos de oposição responsáveis estão interessados na divulgação. "Além disso, em países menos desenvolvidos, muitas crianças nem possuem registro de nascimento", disse, em entrevista por telefone de Estocolmo.
O recrutamento pode ocorrer de maneira forçada ou voluntariamente. Casos de alistamento compulsório são relatados no estudo "Impacto de Conflitos Armados sobre as Crianças", um documento oficial da ONU.
Em Myanma (sudeste da Ásia), uma criança contou ter sido tirada da sala de aula, junto com cerca de 50 colegas de 15 a 17 anos: "Nossos professores fugiram com medo. Não sabíamos o que estava acontecendo e ninguém nos explicou."
Na Etiópia, milícias rebeldes costumavam cercar mercados durante a guerra civil. Os jovens do sexo masculino em condições de combate eram imediatamente embarcados em caminhões.
Em Moçambique, menores recém-recrutados contam ter sido obrigados a matar membros de sua própria comunidade para dificultar a volta para casa.
Mesmo o recrutamento voluntário deve ser visto com ressalvas, já que, em geral, ocorre por falta de alternativas de sobrevivência.
O comprometimento da agricultura e de outras atividades produtivas e o desmantelamento do sistema educacional são fatores que levam ao alistamento voluntário. O atrativo é maior quando as crianças recebem salários.
"No sul do Sudão, a guerra resultou na total falência da agricultura e do sistema educacional. Nas vilas, quase só há mulheres e crianças", disse a psicóloga etíope Hirut Tefferi, da ONG Save the Children no Sudão. "Os adolescentes, para não ficarem sem fazer nada, alistam-se nos grupos armados."
A morte dos pais e a necessidade de proteção também levam ao recrutamento voluntário. "Os grupos armados podem se tornar uma família substituta. Eles fornecem comida e algum tipo de proteção", afirmou Annalena Andrews.
Os sentimentos de revolta e vingança também contribuem. "Crianças que viram atrocidades sendo cometidas contra suas comunidades tendem a se unir às forças opostas", disse Annalena.

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