São Paulo, segunda-feira, 22 de dezembro de 1997
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Vestibulixo

GUSTAVO IOSCHPE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Duvido que o melhor advogado, mesmo com toda sua vocação para embromador, consiga explicar por que ele deveria saber a diferença de estrutura entre butano e alqueno para entrar na faculdade de direito. Ou o motivo pelo qual um candidato a publicidade deveria saber em que estágio do processo digestivo são assimilados glicídios e lipídios. Pois, a não ser que desejem entrar numa daquelas faculdades caça-níqueis em que basta não colocar "três vezes por semana" depois de "sexo", esses candidatos profissionais vão ter de saber tudo aquilo e dez mil vezes mais. Graças ao nosso estapafúrdio sistema de seleção, todos os anos milhões de jovens (fora os penetras que vêem fila, ficam sabendo que é de graça e resolvem se inscrever) passam por esse rito semi-suicida: o vestibular.
Quem não sentiu calafrios com a palavra ou é muito novo, ou é muito velho ou entrou naquelas negociatas obscuras que envolvem um pai, uma faculdade, uma ambulância doada e... shazan! um filho aprovado.
Como esse não é o caso da maioria, todos os anos há um exército de secundaristas (mais o exército de mães nervosas, tias crentes etc.) sendo submetido a uma das formas mais bestas de escolher quem deve ter o privilégio de entrar numa universidade. O vestibular é insensato não só porque submete tanta gente a um sofrimento desnecessário, mas principalmente porque não cumpre com eficácia sua tarefa de selecionar os mais qualificados para as poucas vagas na universidade.
Vestibular não mede conhecimento. Em geral, mede decoreba -na maioria dos casos, de coisas inúteis. Mesmo o melhor vestibular não leva em consideração fatores muito mais importantes do que conhecimento específico. Currículo escolar, atividades extracurriculares, talentos artísticos, história pessoal, nada disso passa pelo filtro opaco das provinhas vestibulíferas. Também não passa, obviamente, a vantagem que os mais ricos (leiam-se melhores colégios, cursinhos, professores particulares e, talvez, ambulâncias) têm sobre os outros.
Por tudo isso e mais um pouco, o vestibular é uma idéia ineficaz e injusta. Injusta porque, em sua sanha quantitativa, acaba privilegiando os mais abonados e falha como provedora de igualdade de oportunidade. Ineficaz porque seus critérios são limitados demais para selecionar os melhores, os que têm mais chances de contribuir para o crescimento de uma nação que precisa tanto de inteligências.
O mais espantoso do vestibular, dada a sua falência, é sua longevidade. Se tanta gente sabe há tanto tempo que o que tá aí é uma porcaria, incrível que ainda exista. Podem culpar professores, reitores, políticos ou o matemático Oswald de Souza, mas -aqui entre nós- o culpado é você. Você que está na universidade e não reclama, porque agora o rojão está nas mãos dos mais novos. Você que se preparou o ano inteiro, passou e agora não tá nem aí.
Ou você que foi reprovado e só critica o sistema porque levou pau. Ou você que está no colégio e aceita uma educação medíocre porque "cai no vestibular". Enfim, todos nós que, de uma forma ou de outra, ficamos quietos. Mudos, parados. Renunciamos ao direito primordial do cidadão que é o de reclamar. Por meio de boicotes, greves, motins, rebeliões, autoflagelo, sei lá. Nada. Com nosso silêncio, somos coniventes. De todas as alternativas de protesto disponíveis, marcamos vestibuliferamente: "(e) - nenhuma das anteriores". E somos todos reprovados, antes mesmo de soar o gongo (ou a sirene da ambulância).

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