São Paulo, domingo, 28 de dezembro de 1997
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Encontros iniciais de um viajante

KENNETH MAXWELL

Esperei, mas o professor Azevedo nunca me recebeu; acho que foi essa experiência que me fez, mais tarde, raramente procurar professores brasileiros, e em lugar disso cuidar do meu trabalho
Continuação da pág. 5-9

Ao tentar protestar, mostrando uma foto dos Beatles no jornal local e insistindo em que eles, não Camões, eram meus compatriotas, não tive sucesso; mas, quando pedi um "garoto" (em Lisboa, um café com leite), eles souberam de imediato de onde eu vinha, e disseram que da próxima vez eu deveria ir ao restaurante na praça do outro quarteirão, onde pedidos como esse podiam ser atendidos de maneira mais discreta.
Depois disso, comecei mesmo a comer fora, e meu primeiro camarão baiano estava tão apimentado que tive de beber quatro das antiquadas garrafas grandes de cerveja Antarctica para conseguir terminá-lo.
Já que eu tinha ido à Bahia para falar com o professor Azevedo e descobrir o que esperavam que eu fizesse, fui procurá-lo. Lembro do brilho do dia, das cores gloriosas das folhas nos jardins ao longo do caminho e dos estranhos e pequenos fossos pintados de branco que existiam em volta das plantas para protegê-las dos insetos. Mas minha chegada provocou grande consternação. Fui levado diretamente à cozinha, onde três senhoras negras e gordas usando aventais brancos se ocupavam de suas panelas e me encaravam com curiosidade. Foi só alguns anos depois que descobri o quanto era importante ter sido levado à cozinha. No começo, presumi que era esse o costume dos brasileiros.
Suponho que seu papel no programa de treinamento metropolitano fosse só mais uma sinecura para o professor Azevedo, desvinculada de quaisquer deveres, e que, na ordem antropológica das coisas, estudantes e empregados domésticos estavam na mesma altura. Esperei, mas o professor Azevedo nunca me recebeu. Acho que foi essa experiência que me fez, mais tarde, raramente procurar professores brasileiros, e em lugar disso cuidar do meu trabalho. Estava acostumado a isso em Portugal, de qualquer forma, porque com a polícia política e os informantes presentes em toda parte não era muito inteligente explicar exatamente o que se estava estudando.
Estranho foi voltar ao meu hotel naquele dia e encontrar o cônsul honorário inglês me esperando para um drinque. Naquela época, as notícias sobre forasteiros se espalhavam rápido. Ele parecia ter saído de um romance de Graham Greene. Lembro claramente de seus olhos vermelhos e de seu terno de linho amarfanhado. Mas ele foi mais que polido e queria muito que eu conhecesse um estudante de Oxford que estava na cidade, um tal John Russell Wood. Mas também jamais consegui encontrar Russell Wood. Talvez o cônsul honorário já devesse saber que a última coisa que um inglês quer é encontrar outro inglês nos trópicos. Mas, como o professor Azevedo não tinha instruções para mim, e, ao que parecia, eu estava por minha conta, parti para o Rio, a cidade em que, desde aquela noite em que vira "Orfeu Negro", mais desejava estar.
Cheguei ao Rio no aeroporto Santos Dumont e pedi ao atendente da linha aérea que me indicasse um hotel. Depois de olhar diversos cartões em seu bolso, mandou-me a um na rua Riachuelo, acima do velho aqueduto do século 18, sobre o qual bondinhos ancestrais trafegavam para lá e para cá, e para além da confusão de casas e lojas que então lotavam o bairro. O hotel parecia bom, até que tentei dormir à noite e me vi atacado por insetos e perturbado pelos passeios dos ratos e pela conversa em voz alta das prostitutas na esquina lá embaixo. Assim, no dia seguinte fui à embaixada britânica e pedi a um funcionário, que me encarava com ar de quem estava achando tudo divertido, que me recomendasse um lugar melhor. A embaixada o fez, e o lugar era o Grande Hotel de Copacabana, como o chamavam, na verdade o apartamento de Maitê Bertrand, situado na rua atrás do hotel Copacabana Palace.
Em algum ponto de sua longa vida, Maitê Bertrand havia aparentemente ajudado os britânicos, escondendo alguém ou alguma coisa em algum lugar; eu nunca descobri os detalhes, mas por esse serviço ela conquistou a gratidão do serviço diplomático britânico, e qualquer pessoa respeitável que estivesse procurando um lugar respeitável para ficar era encaminhada pela embaixada a Maitê.
O apartamento dela ficava no último andar, era perto da praia, e eu o achava delicioso. Maitê dirigia uma espécie de pensão informal com diversos residentes de longo prazo, entre os quais um grego muito velho que havia fugido de Alexandria quando o rei Farouk foi derrubado e Nasser assumiu o governo do Egito, duas senhoras inglesas bastante pudicas que davam aulas na Cultura Inglesa, um mecânico da Air France que cuidava do avião da companhia que fazia a rota Paris-Santiago do Chile a cada duas semanas. E os pilotos franceses que também se hospedavam lá regularmente, mas comiam em uma mesa separada de nós, porque não queriam se misturar com o mecânico, como ele costumava dizer furiosamente a cada vez que partiam. A turma da Air France, porém, era o pão com manteiga de Maitê. Do resto de nós, ela cobrava uma pensão modesta, que, no meu caso, incluía um quartinho com entrada própria, um banheiro e um jantar todas as noites. Comíamos juntos, a não ser que Maitê estivesse recebendo amigos ou os pilotos da Air France estivessem na cidade; nesses casos ela instalava uma mesa para ela e seus convidados perto da janela.
E o Rio? Bem, o Rio foi esplêndido para mim. Mais do que minha mente e meus olhos antecipavam. Os cariocas às vezes costumavam zombar, naquela época, da forma pela qual os europeus ficavam enfeitiçados diante da pura beleza natural do Rio. Eu certamente era um deles. Caminhava toda manhã de uma ponta à outra da avenida Atlântica e voltava pela avenida Nossa Senhora de Copacabana, parando nos bares e barracas para um cafezinho de vez em quando; depois tomava sol com o pessoal da tarde na frente ao hotel Copacabana Palace, tomava o bondinho para o Pão de Açúcar e o Corcovado. Por fim me registrei na Biblioteca Nacional e comecei a explorar seus livros e arquivos, de vez em quando fugindo para o excêntrico e maravilhoso mundo da Cinelândia, do outro lado da rua, para almoçar um queijo quente e um chope.
Um dos convidados de Maitê, à mesa perto da janela, em seus jantares semanais, era um empresário suíço grisalho, de seus 60 anos, acompanhado de um estudante brasileiro muito bonito, Júlio, que devia ter mais ou menos a minha idade. Eu fiquei mais do que intrigado com relação a esse casal, e acredito que eles tenham ficado fascinados por mim, Júlio certamente. De qualquer forma, uma noite Maitê me convidou para ficar depois do jantar para um café e conhaque, para que Júlio pudesse me levar ao cinema no Flamengo. Eu não estava preparado para a sexualidade direta dos brasileiros. O suposto condicionamento que os colégios internos britânicos oferecem quanto a isso é muito exagerado. Eu era completamente ingênuo. O pobre Júlio deve ter pensado que cometera um enorme engano, mas nos tornamos grandes amigos, sempre juntos, no que dependesse de nós, e embora nosso relacionamento tenha permanecido quase que totalmente platônico nos apaixonamos profunda e obsessivamente um pelo outro.
Júlio estudava, ainda que jamais parecesse ir a aulas ou abrir um livro, pelo que eu via. Ralph, o empresário suíço, tinha uma cobertura nos limites de Copacabana, no Posto Seis, com vistas panorâmicas da praia e do Forte de Copacabana. A praia do Arpoador ficava pertinho. Na esquina de seu prédio ficavam os primeiros estúdios da TV Globo, as portas sempre abertas, de modo que podíamos entrar e ver a estranha variedade de programas que a Globo transmitia naquela época.
Íamos duas vezes por semana aos ensaios de uma escola de samba onde, depois de muita hesitação e em meio a grande hilaridade, abandonei minhas inibições e comecei a dançar. Íamos a cerimônias de macumba, que assistíamos em silêncio, reverentemente. Frequentávamos o Teatro Jovem, onde "O Chão dos Penitentes", de Francisco Pereira da Silva, estava em cartaz, e o bar em Ipanema em que Tom Jobim e vários luminares do Cinema Novo passavam suas noites. Eu voltava à pensão de Maitê para jantar, dormia uma ou duas horas e saía à meia-noite para passar as noites nas boates de Copacabana com Júlio, onde, com enorme neutralidade política, bebíamos cuba libre e ouvíamos "Hello Dolly"; voltávamos para casa pela avenida Atlântica enquanto o sol nascia na entrada da baía da Guanabara.
Uma semana antes de eu voltar a Princeton, o caos se instalou no apartamento de Maitê Bertrand. Os pilotos da Air France, pelo que se descobriu, estavam usando o lugar como refúgio para contrabandear alguma coisa. O mecânico desaparecera. Maitê fora informada de que haveria uma batida policial. Já que seu grande hotel não tinha licença de operação, e ela não pagava impostos sobre o que ganhava de seus hóspedes, fomos todos solicitados a partir naquela mesma noite. Felizmente, uma das duas pudicas professoras da Cultura Inglesa havia se apaixonado por um jornalista brasileiro e vinha encontrando dificuldades muito mais sérias que as minhas no uso da pensão de Maitê para suas escapadas noturnas. A professora acabara de alugar um apartamento no Leblon, e me recebeu generosamente durante meus últimos dias no Rio. Nunca mais vimos Maitê, ou o velho grego, e fomos estritamente proibidos de passar perto do Copacabana Palace até que a crise, qualquer que fosse, terminasse.
Cheguei a Princeton em setembro, muito moreno e com algum trabalho realizado. Eu não deixara de ir à Biblioteca Nacional a cada dia, a despeito de minhas outras obsessões, e acumulara um estoque formidável de cartões cheios de anotações. Eu pretendia, na época, escrever uma dissertação sobre a descolonização portuguesa (ou sua ausência) no começo do século 19. Mas o trabalho acadêmico não foi minha principal experiência em meu primeiro encontro com o Brasil.
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