São Paulo, domingo, 28 de dezembro de 1997
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Viagem ao país dos últimos sociólogos

JACQUES RANCIÈRE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Sabemos que "Tristes Trópicos" começa por um capítulo intitulado "O Fim das Viagens". Mas por que exatamente as viagens terminaram e por que o Brasil é um lugar privilegiado para a verificação desse fim? Estas duas questões pressupõem uma outra: o que é viajar, se entendemos com isso não simplesmente um deslocamento de corpos, mas uma aventura do espírito?
Para compreendê-lo, detenhamo-nos num relato de viagem ao Brasil mais antigo e muito mais tosco que o de Lévi-Strauss. Nas "Mémoires d'un Enfant de la Savoie" (Memórias de um Jovem da Savóia), publicadas em Paris em 1844, Claude Genoux, antigo limpador de chaminés que se tornou tipógrafo, narra seus anos de peregrinação e em particular sua viagem ao Brasil, em 1832.
Sua partida deveu-se ao acaso, nos diz ele. Um aviso afixado no porto de Marselha lhe fez saber que os barbeiros brasileiros necessitavam de sanguessugas. Ele comprou, então, um grande lote e transportou-o sobre o Atlântico. Vendidas as suas sanguessugas, diversas circunstâncias o retiveram no país, e ele nos narra as mais relevantes. Estas têm por personagens principais: um jacaré que devora seu companheiro de viagem, uma jibóia que ameaça devorar a ele próprio, um escravo negro de nome Papagaio, antigo rei de uma tribo africana que se revolta contra a injustiça do fazendeiro, massacra toda a família de seu dono e morre enforcado. Este último episódio, para Genoux, enseja uma intensa meditação sobre a contradição de um país em que a opinião pública e a imprensa liberal coexistem com a barbárie da escravidão e os castigos corporais.
A narrativa de Genoux nos apresenta uma figura clássica do relato de viagem. O que nela descobrimos, em primeiro lugar, é que o outro país é muito parecido com a sua alteridade, que ele revela à perfeição o bestiário humano e animal e os acessórios vegetais que o tornam conhecido daqueles que nele nunca puseram nem porão os pés. As aventuras tropicais que Genoux nos relata são as que ele teria podido inventar, se nunca houvesse deixado a Europa. E, de fato, chegamos a pensar que ele talvez jamais o tenha feito. O princípio dessa equivalência, a que jacarés, jibóias e papagaios emprestam sua figura, é igualmente simples: o mapa-múndi não apresenta ao viajante senão as etapas do desenvolvimento da humanidade.
O território do Brasil é um mapa do tempo. O encontro África-América, arbitrado pelo europeu, é o encontro do passado da humanidade com seu futuro. Diante da pintura a óleo da floresta tropical, o jovem da Savóia e o antigo rei tornado escravo comunicam-se na língua do espírito universal. Tal língua se deixa reduzir sem problemas a essa estranha linguagem, que só existe nos livros escolares e na prosa dos autodidatas: "Branco, és o primeiro de tua cor que se abaixou, ou melhor, que se mostrou grande o bastante para aviltar-se na ajuda de um pobre negro"; "jamais, penso eu, discurso semelhante foi pronunciado por um branco na presença de um negro...".
Ao identificar-se à língua do espírito universal, essa língua literária que ninguém jamais falou anula o ceticismo que o viajante extrai de sua experiência. Ela traça a linha de um futuro, ao fim do qual o novo mundo acabará por identificar-se ao território de uma humanidade que marcha rumo à civilização e que se achará governada por uma "ordem", recapitulação de seu "progresso". Essa esperança de uma comunidade regida pela lei de um passado posto em ordem constitui, ao tempo de Genoux, o objeto de uma jovem ciência que Auguste Comte aperfeiçoa e que Durkheim ensinará aos mestres de Lévi-Strauss. Esta ciência, que é mais do que uma ciência, que é a idéia de uma sociedade que transforma sua ciência em crenças e em ritos comuns, chama-se sociologia. Viajar pelo Brasil é viajar pelo país da sociologia.
É esta viagem que o périplo brasileiro de "Tristes Trópicos" conduz ao fim. A recuperação do tempo que vai de Paris a São Paulo e de São Paulo às fronteiras de Rondônia é o caminho pelo qual a sociologia vê o seu sentido inverter-se. Essa é a "tristeza" destes trópicos. Ao desembarcar em Santos, Lévi-Strauss certamente conhecia a célebre frase de um presidente francês: "O Brasil será sempre um país do futuro". E ele também poderia, sem deixar Paris, descrever as alamedas e as casas tropicais do Rio, semelhantes às estações balneárias da França de 1860, as boiadas que cortavam São Paulo ao meio, os edifícios novos já envelhecidos ou a aristocracia decadente dos hipódromos e do Automóvel Clube. O cenário tropical tomou o lugar dos jacarés e das jibóias de Genoux. O futuro da civilização não passa da imitação de seu passado. Porém uma consequência mais grave pode ser deduzida: se o futuro do Brasil está no passado, o mesmo se aplica ao futuro da sociologia.
É o que já mostra o "minueto sociológico" executado pela sociedade seleta que rodeia os jovens professores franceses da Universidade de São Paulo, onde cada espécie sociológica se acha representada por um espécime único: o comunista e o católico, o amante de cães de raça e o de pintura moderna, o erudito local e o poeta surrealista. Este universo social em miniatura -o que é ele senão a caricatura do princípio sociológico de uma sociedade orgânica, constituída de funções bem diferenciadas? A grande fé sociológica, na qual a teoria do progresso recobrara o seu fôlego e que devia emprestar alma às novas repúblicas racionais, talvez não passasse de um jogo social, como o espelho brasileiro fazia suspeitar.
E, contudo, a sociologia não é uma ilusão. Mas para reencontrá-la será preciso deslocar-se para os territórios reais daqueles índios que, segundo o mestre Lévi-Strauss, povoavam as ruas de São Paulo e que, segundo seus interlocutores paulistas, há muito tinham desaparecido do solo brasileiro. À margem do rio Paraguai ou nos confins de Rondônia, o etnólogo descobre, por fim, a sociologia em ato. A pintura facial dos cadiueus ou a topografia da aldeia dos bororos realizam o mesmo programa intelectual: inventar uma ordem cultural que impõe as suas normas à natureza. De fato, estes "selvagens" são "ainda mais sociólogos que Durkheim e que Comte". Eles sentem a mesma repugnância por aquilo que associa aos prazeres do sexo as vulgaridades da procriação quanto gosto por aquela pintura que impõe a regularidade geométrica de seus enfeites aos traços "naturais" do rosto.
Mas a solução desse problema intelectual é também a solução de um problema político: o plano complexo da aldeia bororo e a repartição dos hemisférios na pintura facial dos cadiueus integram, na mesma estrutura, os dois elementos contraditórios da estrutura social: a igualdade, traduzida em simetria, e a repartição assimétrica das três classes hierarquizadas. Ora, exatamente para este propósito é que a sociologia nascera na Europa do século 19 -para fundir numa mesma estrutura a hierarquia necessária à vida do corpo social e a igualdade reivindicada pelo homem dos tempos democráticos; para fazer dessa estrutura o princípio de uma fé e de um ritual pelos quais os membros de uma sociedade manifestam, de uma forma a meio caminho entre consciente e inconsciente, o princípio de sua coesão social. Longe de todo exotismo, o ritual funerário dos bororos realiza o ideal da república positivista, aquele que havia inspirado as comemorações de Terceira República francesa.
O Brasil, portanto, é a terra da sociologia -só que apenas nessas populações em vias de extermínio total, que ele repeliu para os confins de seu território. A cumplicidade do etnólogo com a visão de mundo dos "selvagens" é mais do que um traço de caráter ou princípio de método. É a solidariedade dos últimos autênticos eruditos da sociologia. E a morte lenta dos nambiquaras não é somente o último episódio da conquista "civilizadora". Com eles não morrem tanto os últimos selvagens, mas os últimos verdadeiros sociólogos. E aquele chefe nambiquara que se apodera de um simulacro da escritura -concebida unicamente como meio de poder-, antecipa a morte dessa última verdadeira sociologia. Ele faz dela um simulacro semelhante ao "minueto sociológico" da elite paulista.
Esta é a última lição da viagem brasileira: a recuperação do continente sociológico pelo etnólogo. Porém os nambiquaras não são o último povo visitado pelo autor dos "Tristes Trópicos". Pondo de lado o método científico, ele arranjou tempo para gazetear com os tupi-cavaíbas. Lá, nos relata ele, foi efetivamente capaz de bancar o Robinson e travar com os selvagens um contato que a ausência de intérprete abandonou à sua muda virgindade. Retorno da ciência etnológica ao bom selvagem de Rousseau? Ou a descoberta de que a austera ciência sociológica não era menos utopista que o devaneio do bom selvagem?

Tradução de José Marcos Macedo.

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