São Paulo, domingo, 28 de dezembro de 1997
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Breve geografia

ALBERTO MANGUEL
ESPECIAL PARA A FOLHA

Assim como os quatro homens cegos, ao serem solicitados, descreveram um elefante -o que tocou o tronco pensou que o elefante fosse somente tronco, o que tocou a perna, julgou-o somente perna, e assim por diante-, muitos visitantes solicitados a descrever a vastidão do Brasil pela pequena experiência de conhecer uma de suas partes sem dúvida chegam a pressupostos falsos e ridículos.
Em parte por arrogância, em parte por curiosidade ou medo do desconhecido, temos a audácia de julgar o que quase nada conhecemos. Quando vivi em Buenos Aires, o Brasil era a América Latina para a qual fomos ensinados a dar as nossas costas, provavelmente por inveja de sua autoconfiança; ao morar no Canadá ou na Inglaterra, o Brasil é a quente liberdade para lá dos muros das cidades, perigoso e tentador. "Ninguém vive sob palmeiras impunemente", escreveu Goethe, habituado ao ar frio de seu país.
No entanto, pelo menos uma das impressões do viajante parece ser verdadeira. Em setembro passado, durante minha breve visita ao Brasil (Rio, São Paulo, dois ou três lugares em Minas e uns poucos dias em Fortaleza) para divulgar minha "Uma História da Leitura", o sentimento dominante foi o de generosidade.
Em todo lugar as pessoas ofereciam a hospitalidade de seu tempo, de seu interesse e de sua experiência. E a hospitalidade de seus ouvidos também. Talvez seja justo julgar um país pela qualidade de seus ouvintes; e raramente fui tão questionado, e de maneira tão inteligente, por uma audiência que realmente prestava atenção ao que eu tentava dizer. Em outros lugares, pude me safar com uma vaga pretensão de conhecimento; não no Brasil, onde as pessoas parecem ter um detector de bobagens embutido.
Mas, mais do que hospitalidade, encontrei no Brasil uma forma de generosidade mais rara e inteligente. Lilian Roizenblit, em nome da Companhia das Letras, gentilmente aceitou me acompanhar para ver o trabalho de Aleijadinho, que estou estudando para meu próximo livro. Viajamos a Congonhas do Campo, Tiradentes e Ouro Preto, sendo que nesta visitamos uma série de magníficas igrejas barrocas. A última foi a de Nossa Senhora do Rosário, construída para os escravos negros por Chico Rei, um ex-escravo de Moçambique.
O Estado de Minas tem um sistema por meio do qual turistas ignorantes no assunto, como eu, são acompanhados por jovens guias, treinados em arte e história de sua região. Meu guia era Marcelo José Dias Hypólito. Primeiramente ele me conduziu pelos fatos gerais da história da igreja, apontou algumas esculturas e citou nomes e datas. Depois, talvez por eu ter mencionado meu particular interesse na arte colonial brasileira, Hypólito passou a me explicar detalhes específicos, relações obscuras entre o intricado vocabulário do português barroco e a mais antiga iconografia africana. Ele mostrou carapaças de tartaruga e cauris esculpidos nas volutas européias, as feições negróides que emprestavam aos anjos celebradores conotações subversivas, e os símbolos de fertilidade ocultos (vaginas lustrosas e pênis eretos), explicitamente representados entre folhas e arabescos cristãos.
Hypólito, como transpareceu, é estudante de arquitetura; as informações que me prestou foram objeto de seus próprios estudos. Ele me brindou não somente com fatos rotineiros, como seria sua obrigação, mas com o fruto de sua laboriosa pesquisa pessoal. Tal generosidade parecia natural a ele, e o prazer e orgulho em me guiar por "sua" igreja eram evidentes -mal sabia ele que, para mim, estrangeiro egoísta, ele estava definindo seu país.

Tradução de Rachel Behar.

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