São Paulo, domingo, 2 de fevereiro de 1997
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Os sem-futuro

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

O soldado preto, ou quase preto, ou quase branco, crispa os dedos na garganta do menino preto, que foi arrastado pela rua e levou "porradas", como explica o policial, "para servir de exemplo aos outros colegas".
O menino preto mora no asfalto preto, ganha um troco aqui, pratica um roubo ali, dorme num buraco qualquer e vai levando.
Alguém de sua família veio da África e foi escravo. Da família do soldado também.
O menino preto é a face que ninguém quer ver refletida na janela do automóvel.
É o avesso que desperta o incômodo e o ódio. Deveria estar em casa, na escola, jogando bola. Mas, não, fica no centro assaltando, cheirando cola, desfilando a sua -e a nossa- miséria pelas avenidas da maior cidade do país.
O menino preto poderia, com um pouco mais de sorte -ou azar-, estar na pele do seu algoz. Ser soldado.
Talvez por isso, o homem com a farda o deteste tanto. Por que, em vez de ficar na rua, não vai aprender a ler um pouco e depois se alistar na PM? Ou catar lixo? Ou vender churros?
Não faltará quem pense que a agressão policial aos menores (retratada, na edição de sexta-feira da Folha, pelo fotógrafo Moacyr Lopes Junior) é, se não correta, aceitável e até positiva para conter essa horda de pequenos marginais que atua na cidade.
No fundo, o ideal mesmo seria que eles sumissem de uma hora para outra, como filhotes de gato indesejáveis: colocados dentro de um saco e jogados à correnteza.
É evidente que a atitude dos policiais deve ser condenada. Mas é evidente, também, que a simples punição dos envolvidos, ainda que necessária, é hipócrita.
Afinal, foi a própria sociedade, através do Estado, que decidiu a melhor forma de tratar suas crianças miseráveis: na "porrada".
Se não há investimento político e social consistente para enfrentar o problema dessa legião de "sem-futuro", como evitar que um PM venha a agredir um menino precocemente transformado em bandido, no centro de qualquer grande cidade -o que acontece diariamente, longe das câmeras da imprensa?
Uma tragédia está em curso no asfalto e no campo -e dela participam crianças, ou melhor, esses seres estranhos em que se transformam as crianças pobres do Brasil: bonecos fedorentos, vincados, agressivos.
Uns cortam cana, outros carregam carvão, outros vendem cocaína, muitos assaltam e pedem esmolas. Não amam com fé e orgulho a terra em que nasceram. Não têm reis nem Rainhas que lutem por seus direitos.
Não interessam.

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