São Paulo, domingo, 2 de fevereiro de 1997
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O divã de Wittgenstein

RICHARD RORTY
ESPECIAL PARA O "NYT BOOK REVIEW"

Suponhamos que os críticos mais duros de Freud tenham razão. Que o próprio Freud fosse um trapaceiro egomaníaco e enganador. Os psicanalistas nem sequer conseguem entrar em acordo sobre o que pode ser considerado uma cura, muito menos efetuar uma cura. As idéias freudianas já encorajaram abominações tais como a prisão de pais inocentes com base nas "memórias reprimidas" de abuso, arrancadas de criancinhas por terapeutas ansiosos. Será que devemos concluir que Freud não tem nada a nos ensinar -que deveríamos, à medida do possível, eliminar suas idéias de nossas mentes e nossa cultura?
Consideremos a seguinte analogia: um códice antigo recém-descoberto teria nos dado boas razões para crer que o cristianismo foi um embuste perpetrado por um vigarista de nome Paulo (anteriormente conhecido como Saulo). Enxergando no ressentimento dos pobres e oprimidos uma oportunidade comercial, Paulo teria inventado uma religião que ensina que a única vontade de Deus é que nos amemos uns aos outros e pago "ghost writers" para escrever o Evangelho e as Epístolas.
Depois de juntar a essa descoberta tudo que já sabemos sobre a Doação de Constantino, forjada, a Inquisição espanhola e os televangelistas, somado à ausência de evidências científicas que comprovem a alegação de que Jesus teria sido ao mesmo tempo Deus e homem, será que deveríamos concluir que devemos expulsar o cristianismo de nossas mentes e nossa cultura?
Poderíamos refletir que homens maus ocasionalmente têm boas idéias, e que os elementos igualitários e altruístas contidos no cristianismo têm feito muito pela democracia e os direitos humanos. Assim, talvez nos decidíssemos a jogar fora apenas as partes podres do cristianismo (os dogmas e o clero, quem sabe), conservando as partes boas.
Muitas pessoas diriam algo semelhante em relação a Freud: talvez devêssemos rejeitar a condição de ciência que a psicanálise atribui a si mesma; possivelmente até mesmo deixar os departamentos financeiros dos hospitais reduzir a psicanálise à penúria. Mas não precisaríamos abrir mão de nosso freudismo de bom senso. Poderíamos continuar a explicar nossos caprichos, fantasias e infelicidades neuróticas por meio de referências a nossos desejos e crenças inconscientes -especialmente as crenças referentes a nossos pais e os desejos por manifestações sexuais que fogem do comum.
Alguns filósofos, como Adolf Grünbaum, veriam tudo isso como um meio-termo conciliatório, que não satisfaz. Outros, como Marcia Cavell e Thomas Nagel, responderiam que ninguém, exceto Freud, encontrou sentido nesses caprichos, fantasias e infelicidades -sem falar em nossos sonhos, nossas piadas e nossos lapsos-, e que, até que alguém o faça, não pode haver mal em interpretá-los de maneiras freudianas. Eles concedem que a psicanálise não se parece muito com uma ciência, mas acham que é engano desprezá-la, reduzindo-a a uma pseudociência.
Jacques Bouveresse concorda com Cavell e Nagel. Está disposto a admitir que Freud nos ajudou a enxergar a nós mesmos dentro de uma perspectiva nova e útil. Mas acha que Freud exagerou tremendamente a importância de suas descobertas e que Ludwig Wittgenstein pode nos ajudar a não nos deixarmos enganar por suas pretensões.
"Wittgenstein Reads Freud" (Wittgenstein Lê Freud) é o primeiro livro deste filósofo respeitado e de ampla visão, professor do Collège de France, a ser traduzido ao inglês. Bouveresse é um dos muito poucos filósofos de qualquer parte do mundo que se mostram igualmente à vontade tanto na tradição da filosofia pós-nietzschiana, que inclui Martin Heidegger e Jacques Derrida, quanto na chamada tradição "analítica", em grande medida anglófona, que abrange desde Bertrand Russell a Donald Davidson, passando por Wittgenstein. Para a consternação -e muitas vezes o desgosto- de seus colegas franceses, muitas vezes prefere a segunda. Seus livros divulgaram o conhecimento de Wittgenstein na França, e ele espera que algum dia a filosofia francesa vá se tornar "analítica".
Acha que a maioria dos intelectuais franceses se deixou levar na conversa de Jacques Lacan, fundindo a psicanálise e a filosofia, muitas vezes em detrimento de ambas. A maioria dos filósofos anglófonos, mesmo aqueles mais favoráveis a Freud, vêem Lacan mais como pensador excêntrico do que como gênio, e Bouveresse concorda com essa visão.
Neste livro lúcido e bem equilibrado, Bouveresse examina com cuidado tudo que seu herói disse a respeito de Freud. Mas o resultado é pouco conclusivo. Wittgenstein era fascinado por Freud, mas jamais conseguiu chegar a uma opinião clara acerca da natureza ou a extensão de suas realizações. Para ele, está claro que a psicanálise não se assemelha à física. Para ser uma ciência, é preciso oferecer hipóteses falsificáveis, e Freud consegue facilmente contornar quaisquer evidências supostamente falsificadoras, enquanto os físicos normalmente não o conseguem. "O que Freud afirma a respeito do subconsciente soa como ciência", disse Wittgenstein, "mas, na realidade, não passa de um meio de representação".
Mas o fato de haver criado um "meio de representação" -uma nova maneira de falar sobre, portanto de relacionar entre si, um conjunto de fatos antes isolados- não é nada desprezível. Wittgenstein também afirmou que "o que um Copérnico ou um Darwin realmente fizeram não foi a descoberta de uma verdadeira teoria, mas de um novo e fértil ponto de vista". Como reconhece Bouveresse, "o tratamento geral dado por Wittgenstein às ciências tende a solapar, em lugar de reforçar, a distinção rígida que ele procura traçar entre a situação da psicanálise e aquela de uma disciplina como a física".
Grünbaum e seus aliados (tais como Frederick Crews) gostariam de manter essa distinção firme e forte e insistir que falar de um "novo ponto de vista" ou "maneira de falar" serve apenas para confundir a questão principal. Wittgenstein, entretanto, pensava que recebemos muitas de nossas idéias mais úteis de áreas culturais -religião, poesia, filosofia, psicanálise- que não têm como dizer-se donas de nada que se aproxime do tipo de conhecimento oferecido pela física. Embora se estenda muito sobre as dessemelhanças entre a descoberta do inconsciente e a descoberta do positron, o "status científico" de uma idéia útil, para ele, não é, em última análise, tão importante assim.
Grünbaum acredita piamente, e Bouveresse espera, que os filósofos possam examinar credenciais intelectuais e emitir ou negar certificados de qualidade epistemológica. Seria conveniente dispormos de um "órgão inspetor" desse tipo, mas apenas se seus integrantes normalmente manifestassem posições comuns. Os filósofos não costumam fazê-lo. Esse fato nos leva a crer que não faz sentido buscar ajuda profissional quando se trata de decidir se o arauto de novas e espantosas idéias (alguém como Platão, São Paulo, Freud, Wittgenstein, Heidegger ou Lacan) é um excêntrico ou um gênio. Sempre teremos que testar essas idéias por nossa própria conta.

Tradução de Clara Allain.

Onde encomendar:
"Wittgenstein Reads Freud - The Myth of the Unconscious" (Wittgenstein Lê Freud - O Mito do Inconsciente), de Jacques Bouveresse, trad. de Carol Cosman (Princeton University Press, 143 págs., US$ 12,95) pode ser encomendado, em São Paulo, à Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, tel. 011/285-4033) e, no Rio de Janeiro, à Livraria Marcabru (r. Marquês de São Vicente, 124, tel 021/294-6396).

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