São Paulo, domingo, 2 de fevereiro de 1997
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Paradoxos de um lirismo exagerado

AUGUSTO MASSI
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Pescador de Nuvens", segundo livro de Davino Ribeiro de Sena, é um paradoxo crítico. À medida que o autor, demonstrando grande habilidade técnica, mobiliza recursos próprios à arte poética, a obra naufraga num lirismo que beira o piegas.
Ao longo de 33 poemas, numa sequência linear e cronológica, desfila diante do leitor a história de dois irmãos, protagonistas desse romance familiar: Henrique e Euclides. Na fabricação da genealogia, encontramos os velhos patriarcas, Davi de Oliveira e Diana Araújo Lima, os tios Vando e Inocêncio e, por fim, Sara e Pedro, filhos adotivos de Henrique.
A diferença de temperamento dos dois irmãos organiza uma série de oposições a partir das quais a obra se estrutura. Henrique é músico, elétrico, sapo-ferreiro. Euclides é cientista, lento, caramujo. Como pano de fundo, o contraste entre duas cidades: a nostalgia da infância passada no Recife e a difícil adaptação em Brasília. Novos pares de oposição: cultura arcaica (o sertão, Catimbó, Curupira) versus mundo do progresso (Brasília, televisão, computadores).
Dentre as qualidades da obra, vale assinalar a tentativa de dotar a linguagem poética daqueles movimentos característicos da prosa. O simples fato de nos remeter a um período relativamente próximo da história do país, fazendo referências à importância crescente da televisão, à cultura do rock ou à Copa de 70, aguça a curiosidade e fornece certo alento ao leitor. Porém, pouco a pouco, a sensação de pisar em terreno seguro é substituída pela constatação de que caminhamos para o surrado lugar comum.
Seria cômodo listar e enfatizar os defeitos -e não são poucos- que prejudicam "Pescador de Nuvens". No entanto, julgo que terá maior utilidade apontar a questão de base que mina o trabalho do autor. O problema todo parece residir numa incompatibilidade entre o modelo adotado, narrativo e construtivo, tomado de empréstimo de João Cabral (equilíbrio simétrico das quadras, rimas toantes, eleição de alguns símbolos básicos: ferro, vidro, areia...) e a personalidade poética de Davino, propensa a manifestações líricas ditadas pela subjetividade.
A presença de João Cabral projeta-se até sobre os dados biográficos de Davino, cuja infância foi vivida nas praias de Boa Viagem e Olinda e no ingresso na carreira diplomática. Mas as diferenças literárias não poderiam ser maiores. Enquanto para Davino o real é uma passagem para o poético, para João Cabral, quanto mais real mais poético.
Para qualquer leitor habituado à poesia moderna o título já causa um certo desconforto. Porém, quando tomamos conhecimento do seu significado dentro da trama, cresce ainda mais o sentimento de inadequação: "Pescador de Nuvens/ é um transmissor de sinais acoplado/ a um computador. Sua ecológica/ programação vai monitorar o ângulo/ de incidência regional da luz solar./ Em seguida, vai atuar emitindo/ sinais a estação geostacionária./ Esta/ por sua vez, condensa um vasto/ cardume de nuvens, que deve filtrar/ a radiação solar. Domesticá-la".
É a partir deste ponto que o autor perde o pulso da história. A narrativa, que vinha sendo construída em chave realista e pontuada por polaridades, adquire uma tintura místico-científica responsável pela dissolução das tensões anteriormente arquitetadas. "Jurupari" e "Sinais de Marte" são poemas difíceis de engolir. Isso sem falar do "Desenlace" final, quando a astronauta Sara apaga a imagem do pai do simulador de vidas.
Essa mudança de rumo revela falta de vigilância crítica e incapacidade para impor certos limites. É incompreensível que coexistam no mesmo livro poemas da qualidade de "Hospitais Recifenses" e textos retóricos como "Dentes de Leite".
Resta afinal a expectativa de que após "Castelos de Areia" (Estação Liberdade, 1991) e "Pescador de Nuvens", Davino abandone de vez a sedução das sereias, dos serafins e dos simuladores, em proveito do amadurecimento de outras potencialidades latentes em sua poesia.

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