São Paulo, domingo, 2 de fevereiro de 1997
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As ameaças à unificação européia

ALAIN TOURAINE
ESPECIAL PARA A FOLHA

A idéia européia teve tanto mais sucesso quanto mais era vaga e misturava confusamente o tema da abertura comercial, etapa continental rumo à globalização, e o de um Estado europeu em formação e capaz de ter uma vontade política ou até mesmo militar. De um lado, pois, o objetivo é a modernização; de outro, a internacionalização.
A França e a Alemanha acalentaram juntas essa confusão entre as duas concepções opostas enquanto as medidas práticas adotadas visavam a criar o mercado único que existe hoje e que muitos, em particular Jacques Delors, puderam tomar como a base de uma construção política cuja chave de abóbada seria a moeda unificada, já que a moeda é de fato um aspecto essencial da soberania e, portanto, um instrumento de governo e não somente de funcionamento do mercado.
Os alemães, a bem dizer, eludiram até agora os debates espinhosos porque, há sete anos, consagram-se à sua reunificação, que permanecerá a grande obra do chanceler Kohl. Fato este que encobre as hesitações e contradições do SPD, o partido da oposição, cujo atual dirigente, Oskar Lafontaine, sustenta ambos discursos com um brio que já não convence ninguém.
Os franceses encontram-se numa situação mais difícil que a Alemanha e os demais países europeus, à exceção da Itália. Os espanhóis ainda são regidos por um único e indiscutível princípio de ação: alcançar a Europa, e os ingleses, ou ao menos os governos ingleses conservadores, sempre foram hostis à integração política européia.
Os italianos, por sua vez, acham-se numa situação que não lhes dá margem a escolhas; o sustento de sua economia foi assinalado, quatro anos atrás, por uma desvalorização em parte justificada pela superestima interna de sua moeda, e agora eles despendem sinceros esforços, em geral coroados de êxito, para retornar ao sistema monetário europeu -o que foi feito- e para ingressar na moeda unificada, o que será possível, já que os critérios fixados pelo Tratado de Maastricht não serão respeitados nem pela Alemanha nem pela França.
Esta última se vê entretanto numa situação paradoxal, o que explica seu descontentamento. Foi ela que defendeu com mais ímpeto a idéia de uma Europa política; foi ela a única a contestar a hegemonia americana, em especial no Oriente Médio. É ela portanto que atribui maior importância à criação de uma moeda única, embora por isso desperte suspeitas nos alemães, para quem o euro jamais valerá um bom marco alemão. É na França, mais do que em outros países, que se apresenta o euro como uma moeda de reserva internacional, capaz de fazer frente ao dólar e ao mesmo tempo resistir aos ataques dos especuladores vindos de Nova York e Londres.
A criação de uma moeda única tornou-se assim o objetivo praticamente central do governo francês, cujo rigor orçamentário impõe, há mais de dez anos, restrições paralisantes à economia do país, uma vez que o governo aperta dois freios, um orçamentário e outro monetário, mas nenhum acelerador, fato que explica o carro imobilizado.
Os alemães receberam a reunificação, os italianos desfrutam do surto econômico dos últimos quatro anos e os espanhóis sabem que devem insistir na trilha da modernização; os franceses, ao contrário, nada receberam e nada lhes vem compensar o peso do desemprego avassalador. Seu país não conta mais com uma política econômica destacada de uma política monetária, que se restringe ela própria ao rigor orçamentário.
A primeira vítima dessa situação, na Alemanha, na França e também em outros países, é a idéia européia, agora que ela assumiu a forma bastante concreta e constrangedora do respeito aos critérios de convergência de Maastricht. Além do mais, a opinião pública começa a se dar conta da reviravolta que representa a extinção da moeda nacional, ou seja, de um elemento essencial de toda política econômica e portanto social.
Quem governará a Europa? Esta sofre mais e mais de um déficit democrático fundamental. A Europa não foi criada pelas nações e é dirigida por tecnocratas, por déspotas esclarecidos. A sua ação foi até aqui largamente positiva, uma vez que se tratava sobretudo de eliminar os obstáculos à circulação de capitais e mercadorias, mas ela não indica de forma alguma o tipo de sociedade que a unificação monetária obrigará construir.
Aqui ainda, e aqui sobretudo, estamos ante dois caminhos divergentes: os ingleses construíram uma sociedade precária; os franceses impediram o aumento de desigualdades, mas ao preço de um austero desemprego. Os alemães já se empenham num debate fundamental para escolher entre a manutenção da economia social de mercado, apoiada em grandes negociações entre patrões e sindicatos, e a adoção de uma sociedade à inglesa, de compasso duplo. Um estudo recente preparado pelos Estados da Saxônia e da Baviera já anuncia que em 2015 só a metade dos assalariados alemães possuirão ainda um emprego estável, em período integral. Quanto à Itália, as suas contradições são mais regionais do que sociais, aliás como a Espanha, onde cresce a distância entre a Catalunha e o sul do país.
Todos os debates e protestos, aparentemente bastante diversos de um país a outro, formam um conjunto coerente, pois a concepção liberal européia, inserida na ideologia da globalização, tem por saldo a conivência com uma crescente desigualdade social ou regional, como se vê nos Estados Unidos e no Reino Unido, e, por outro lado, uma vontade de integração social e de reforço político tropeça em toda parte com a defesa dos interesses adquiridos pelas categorias médias que, no setor privado como no público, recebem subvenções do Estado.
A crise da Europa não se deve somente a que ela deva escolher entre duas concepções diferentes de seu futuro, mas ao fato de ela ser atraída por uma lógica puramente econômica ou antes financeira, de um lado, e pela resistência da antiga economia administrativa ("command economy"), de outro. Entre tais soluções, igualmente perigosas, a capacidade de propor e de realizar uma política que combine a abertura econômica e a integração social de cada país aparece perigosamente debilitada.
A divergência fundamental entre a Europa e a América Latina é que a importância e a legitimidade dos interesses adquiridos são muito maiores na Europa, após meio século de Welfare State -o que explica a atual paralisia européia, cujo vigor tecnológico não basta para levar adiante as sociedades e onde as forças de resistência, maiores que as forças do progresso, são revigoradas com os efeitos socialmente negativos de uma globalização submissa, de um lado, ao capital financeiro e, de outro, à potência política hegemônica, os EUA.
A Europa alcançou o apogeu de sua crise. Dentro de um ano, as decisões sobre a moeda única terão sido tomadas e ninguém duvida da criação do euro nem de que dela tomarão parte pelo menos os países signatários do Tratado de Roma, berço da Comunidade Européia -a Alemanha e a França, os países do Benelux e a Itália. É provável que também os membros mais jovens da União Européia, em particular a Espanha, dela participem desde o início.
Essa criação não solucionará os problemas econômicos, porém cerrará as portas do passado e forçará os países enfraquecidos por uma longa crise a reelegerem como prioridade o fortalecimento de sua sociedade, ou seja, a lutarem antes de tudo contra o desemprego. E o papel de destaque bem poderia passar então aos países que têm plena consciência da única política viável para a Europa atual: combinar a abertura econômica à reintegração da sociedade -política anunciada pela centro-esquerda italiana e da qual se aproxima o futuro governo inglês chefiado por Tony Blair.
Os alemães e os franceses deverão, eles também, dar prioridade a metas sociais. O que será mais difícil para os franceses, que padecem da fraqueza de seus sindicatos, elementos de defesa do Estado corporativo mais que da defesa dos assalariados no mercado de trabalho.
Certo é que a Europa ocidental vai apostar o seu futuro a longo prazo durante o período de instalação da moeda única, ou seja, durante os próximos cinco anos. A moeda única obrigará a Europa a uma escolha política coerente e de longo termo; caso fracasse, ela se esgotará em conflitos que a tornarão mais e mais ingovernável e que causarão um aumento das iniquidades sociais e regionais, seguidas pela decomposição das nações, justamente numa Europa que primeiro as viu nascer.

Tradução de José Marcos Macedo.

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