São Paulo, domingo, 2 de fevereiro de 1997
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As elites, que sempre elaboraram a Constituição, agora descobriram a Constituição descartável

ANTONIO CALLADO

Aqui está de novo Austregésilo de Athayde: "Cláudio acompanhara a Revolução Americana, sabia que ao norte do continente um grande povo proclamara a independência. (...) Washington era citado como um semideus. Perpassava nessas conversas, a princípio, a tímida aragem da doutrina em forma de longínqua esperança. Durante o dia, advogado e o juiz", isto é Cláudio e Gonzaga, "cumprindo os deveres dos seus encargos, ponderavam o sofrimento do povo, as enormidades do fisco, as ameaças da derrama anunciada, enquanto partiam as tropas copiosas, conduzindo para o litoral, na lombada dos burros, o ouro roubado à terra. E tinham que pleitear a causa dos humildes e julgá-la segundo os rigores das Ordenações, no serviço leal de Sua Majestade".
Nesta sua última frase Athayde realmente captou o dilema por excelência de Cláudio e Gonzaga, ambos conhecedores profundos e executores das leis de Portugal e ambos, ao mesmo tempo, já rendidos ao domínio da outra Lei, que raiava como um sol novo em folha no céu dos Estados Unidos e da França, encerrando o período do absolutismo monárquico.
No entanto, mesmo assim, tinham o consolo da poesia que praticavam. Refugiavam-se nela. E, ainda que Cláudio Manuel da Costa não tenha chegado à sustida e forme beleza dos versos de Gonzaga dedicados a Marília, ele nos deixou uma coleção, cheia de graça e frescor, de sonetos de molde camoniano. E atingiu um momento especialmente alto quando, ao tomar como tema uma história clássica e cheia de versões ilustres -de Ovídio passou a Metastásio e a um poema lindíssimo de Góngora-, deu-lhe, mesmo assim, um toque mágico, novo. Trata-se da lenda de Galatéia, amada pelo belo pastor Acis e perseguida pelo insano amor do ciclope Polifemo. Cláudio foi o único que se compadeceu do gigante, daquele ser monstruoso, mas, tal como o viu Cláudio, monstruosamente apaixonado.
Antonio Candido celebrou assim esse momento luminoso da nossa poesia no século 18: "...o contraste dramático entre o gigante grotesco e a ternura que o anima permitiu a Cláudio um poema comovente, quase trágico. O pobre ciclope apaixonado, largado a soluçar sua paixão desmesurada nas verdes relvas do prado arcádico, entre pastores e pastoras de ópera, produz o efeito de um estampido nessa atmosfera de 'parnaso obsequioso' -graças à contensão clássica e à força barroca que o anima". Antonio Candido tem razão, e o velho Cláudio, meu patrono e patrono de Austregésilo, às vezes nos faz pensar, ao falar pelo ciclope, em algum Vinicius de Moraes solto na roça e disposto a esvaziar de gado alguma fazenda da família para conquistar Galatéia:
"E se não basta o excesso/ De amor para abrandar-te,/ Quanto rebanho vês cobrir o monte,/ Tudo, tudo ofereço:/ Este branco novilho,/ Daquela parda ovelha tenro filho,/ De dar-te se contenta/ Quem guarda amor, zelos apascenta".
Seja como for, o que parece indiscutível é que a poesia criada pelos árcades da Academia Ultramarina e praticada com brilho por Gonzaga, Cláudio e por Inácio José de Alvarenga Peixoto terá ocupado demais o tempo desses inconfidentes. Havia, certamente, planos de subversão. Mas, antes de mais nada, por exemplo, escolheu-se o lema da bandeira revolucionária. O primeiro "Ordem e Progresso" que tivemos foi o verso virgiliano "Libertas quae sera tamen". Ora, ao contrário do que ficou pensando a maioria do povo brasileiro, o verso nada tem de heróico, ou patriótico, no poema original. Vou pedir vênia para uma digressão, na qual citarei uma extraordinária façanha de tradução empreendida pelo grande poeta que foi Paul Valéry, acadêmico, Académie Française.
Um editor de livros de arte pediu a Valéry, durante a guerra, que lhe traduzisse, para um belo volume ilustrado que planejava, as "Bucólicas" de Virgílio. Assustado, lembrando-se das aulas de latim nos bancos escolares, Valéry fez ver ao editor que já havia excelentes versões do Virgílio inteiro em francês. Mas o editor não queria mais um Virgílio traduzido por algum professor. Queria V. e V., Virgílio e Valéry. Queria, mais ainda, para chegar a uma beleza marmórea das páginas bilíngues, que, verso a verso, linha a linha, os poemas se correspondessem. Queria mais ou menos que pastores latinos do ano 40 dialogassem num coro simétrico com pastores franceses de 1940. A proposta era tão atrevida e difícil que Valéry aceitou.
Infelizmente não possuo a jóia que é a edição de luxo que o editor Roudinesco publicou. Mas mesmo a brochura que a Gallimard imprimiu da obra -só os poemas, em latim e francês, um defronte do outro como num espelho- dá, além da leitura, um prazer visual extraordinário.
O primeiro poema das "Bucólicas" é uma conversa entre Titiro e Melibeu, pastores que, na realidade, eram proprietários rurais, como Glauceste Satúrnio e Dirceu. Melibeu pergunta ao outro o que foi que lhe trouxe o sossego e contentamento que se vêem em seu semblante e ouve a resposta: "Libertas quae sera tamen respexit inertem"... que os versos de Valéry, que traduzo, vão ecoando em francês: "A liberdade, que, tardia, apesar da minha negligência me veio, dignando-se enfim a interessar-se por mim". E prossegue: "Deixado por Galatéia, Amarílis já me havia tomado como amante". Como vemos, com certo espanto, a liberdade que tardou, mas veio, foi a de ver-se o pastor livre do amor, provavelmente tirânico, de Galatéia, caindo nos braços de Amarílis. Em seguida ele vai a Roma, de onde volta ainda mais satisfeito para o convívio de suas ovelhas, à sombra das faias. Daí a felicidade que dele se irradia.
Não importa. Os árcades inconfidentes, quando elegeram seu lema, sua bandeira, não pretendiam contar os amores de ninguém. E sabiam, aliás, que o vocabulário do amor é um só e que no Cântico dos Cânticos, como nos versos de Santa Teresa ou de São João da Cruz, o leitor não sabe se está diante de amores do céu ou da Terra. Os inconfidentes retiraram, dos amores de Titiro, o verso que, isolado, enaltecia aqueles que buscam a liberdade em si, a independência, pessoal ou da pátria: "Liberdade, ainda que tardia".
E armaram sua conspiração, que sem dúvida teria resultado em prisões, em devassas, mas não teria consequências maiores, se não surgisse, entre os árcades, um complicador. Se não se manifestasse entre eles uma dessas presenças que perturbam, revivam, convulsionam a vida dos outros sem pedir licença. Surgiu, em suma, um herói, que não teve nome arcádico, que não possuía gado ou lavoura. Mas o alferes Joaquim José da Silva Xavier nada tem a ver com o que exponho aqui. Ele não teria acesso a esta ou a qualquer outra academia. Não se elegeria em nenhuma delas, nem mesmo no quarto escrutínio de uma quarta tentativa. Era desses que primeiro ficam sozinhos, para viverem depois, para sempre, no dia-a-dia da vida de um povo.
Ainda assim, meu patrono, Cláudio Manuel, teve seu modesto quinhão da tragédia. Morreu no cárcere. Suicidou-se, ao que tudo indica, como um belo e frágil pastor Acis, aterrado com o ciclope Polifemo, que o perseguia. Depois da Inconfidência houve, aqui no Rio, algo que só poderíamos chamar pseudoconjuração, pois não havia conjurados. Havia, simplesmente, intelectuais reunidos numa academia chamada Sociedade Literária.
Desconfiado, e pensando no que ocorrera em Minas, o vice-rei, conde de Resende, meteu em horríveis masmorras da Ilha das Cobras os indiciados. Interrogados, maltratados, vilipendiados, lá ficaram durante três anos. Foram afinal mandados para casa, em 1797. A história guardou o nome de dois, o poeta Manuel Inácio da Silva Alvarenga e o doutor Mariano José Pereira da Fonseca, que se tornaria mais tarde o marquês de Maricá, autor de um livro de máximas. Maricá produziu um total de 4.188 máximas e reflexões. Depois dessa frustrante e última experiência baixou o ritmo da criação de academias.
A nossa, um século depois, surgiu de uma nova mentalidade, com a vocação exclusiva de pôr-se a serviço da cultura do país e à margem de qualquer tendência política do momento. Está dando tão certo, em sua perfeita estabilidade, que só corre o risco de um dia lhe pedirem que governe o país. Saberemos resistir.
Mas é tempo de nos voltarmos para aqueles que antes de mim ocuparam esta cadeira, a de número oito, que parece ter uma certa preferência pelo Estado do Rio. O patrono era mineiro, mas os dois ocupantes seguintes -Alberto de Oliveira e Oliveira Viana- eram de Saquarema. Em seguida ocupou-a meu predecessor, Austregésilo de Athayde, nascido em Pernambuco, educado no Ceará, irradiado depois, pelas rotativas e cadeias radiofônicas dos Diários Associados e pelo seu próprio gênio de jornalista e homem público, pelo vasto território brasileiro. Agora, com este niteroiense, que sou eu, volta a cadeira número oito à Velha Província, pois quem antecedeu Austregésilo foi o citado Oliveira Viana, que acreditava em um Brasil centralizado sobretudo no Rio e no Estado do Rio. Aliás, acho que, se vivo fosse em 1993, teria, no plebiscito, votado pela volta à monarquia. (...)
Conservador, elitista, Oliveira Viana tem como virtude maior, a meu ver, a dura e pouco brasileira coragem de ser antipático, de remar contra a corrente. Comumente, entre nós, até membros de um governo ditatorial se declaram a favor da democracia. Lutam para que ela venha um dia, dizem, um dia: cousas futuras!
Oliveira Viana (que era, diga-se de passagem, um admirador do conde de Gobineau) escrevia, ajuizando seu próprio livro ("Populações Meridionais do Brasil", 1920): "Os povos civilizados em geral, principalmente os povos de origem colonial e de civilização transplante, como o nosso, possuem sempre duas constituições políticas: uma escrita, que não se pratica e que, por isso mesmo, não vale nada -e é a que está nas leis e nos códigos políticos; outra, não escrita e viva, que é a que o povo pratica, adaptando-a ao seu espírito, à sua mentalidade, à sua estrutura -e as deturpando, as deformando, ou, mesmo, as revogando- as instituições estabelecidas nas leis e nos códigos políticos".
Aqui fecho aspas e digo ao meu ilustre predecessor, que não estando vivo hoje não pode saber o que ocorre neste país, que ele amou e estudou a fundo, que a Constituição, feita pelas elites políticas, continua não valendo nada, mas que o povo continua longe de adaptá-la, deturpá-la, revogá-la. As elites políticas, que sempre elaboraram a Constituição, agora marcam prazo de meros cinco anos, para modificá-la em tudo que lhes parecer necessário. Descobriram, meu prezado antecessor, a Constituição descartável.
Mas às senhoras e senhores que ouvem não digo o mais novo, mas o mais recente, dos acadêmicos, peço perdão pelo tom meio ácido. Austregésilo de Athayde, homem do Norte, homem consciente da importância de um país federativo e democrático, divergiu, em seu discurso de posse, das teses brilhantes, mas um tanto prepotentes, de Oliveira Viana: soube porém fazê-lo com uma classe, uma finura e uma sã honestidade que deviam servir de modelo a qualquer neófilo num primeiro dia de aflição e fardão.
Devo aliás acrescentar que, lendo e lendo discursos acadêmicos de posse, em busca de lenitivo e inspiração, notei em vários o germe da divergência, da cizânia, diante da opinião política ou do estilo literário de ocupantes anteriores da respectiva cadeira. Fiquei mesmo tentado a citar alguns momentos dessa rebeldia de calouros contra mestres já afastados do magistério. Mas me contive, apesar do indiscutível sabor e brilho de muitas dessas manifestações. Por que destacar, sublinhar, em nobres textos, divergências e implicâncias que lhes trazem sal, mas que, extraídas deles, tornam-se ardidas, pungentes? Lembrei-me, inclusive, das observações e conselhos da vidente Bárbara, que, à medida que eu avançava neste discurso, me parecia cada vez mais clarividente: "Brigaram no ventre de sua mãe, que tem? Cá fora também se briga. Seus filhos serão gloriosos. Quanto à qualidade da glória, cousas futuras!". (...)
Deixei para o fim o doce encargo de agradecer às senhoras e senhores acadêmicos a generosa acolhida que me deram, e que muito me tocou. Pelo tempo que levei hesitante, temeroso do fardão, das novas responsabilidades, previ, ao resolver tentar a Academia, como se diz, luta mais árdua. Para surpresa minha, eu vos garanto, só tive um voto contra minha temeridade. Desde então procuro, como um novo Diógenes, este único homem de juízo entre os tantos acadêmicos generosos demais. De algum lugar diante de mim esse austero voto contra estará me olhando e dizendo aos seus botões -ou palmas de ouro, que botões não nos permitem- que eleição no Brasil acaba sempre assim. Aos demais acadêmicos, companheiros meus agora, meu comovido muito obrigado.
Minhas senhoras, meus senhores, está acabado o discurso.

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