São Paulo, domingo, 2 de fevereiro de 1997
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O redescobrimento do Brasil

ANTÔNIO TORRES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma parte considerável da vida de Antonio Callado pesa no meu currículo, como um riquíssimo aprendizado literário e de vida. Mestre afável, ele sempre repassou ensinamentos indispensáveis com uma fidalguia surpreendente para estes tempos tão truculentos. Escritor de tempo integral, sua dedicação às letras impressionava, levando-se em conta que este é um país que frequentemente convidada os seus autores a desistirem, como já disse alguém, acho que a querida Lygia Fagundes Telles.
Antonio Callado nunca fazia batota: na sua arte e na sua vida. Jamais traficou ou mercantilizou a sua consciência. Ele atravessou os anos de chumbo e encarou os chamados "anos débeis" sem entregar a rapadura. Não escorregou nas rampas do poder, nem se atrelou aos elevadores do mercado. Manteve-se sempre fiel a si mesmo, ao seu texto, às suas idéias. O nome dele era Estilo.
Primeiro descobri o seu estilo literário. Em Lisboa! Era um dia qualquer do primeiro semestre de 1968. Um fim de tarde cinzento e frio, sujeito a chuvas, eu me lembro, porque sentia saudades do sol. Aconcheguei-me numa livraria. Onde um título curioso me chamou a atenção: "Quarup". O que era isso? O que seria "quarup"? Coisa de alentejano? Tudo que soava estranho em Portugal parecia vir do Alentejo. E o autor, esse Antonio Callado? Só podia ser brasileiro. E era, santa ignorância de um baiano que muito cedo havia pulado para São Paulo e de lá para Lisboa.
Levei o livro pra casa, para passar uma chuva. E só desgrudei dele quando a chuva passou, três madrugadas depois. Foi uma descoberta e tanto. Que viagem. A um país desconhecido, que, não por acaso, era o meu. Um país em ebulição: na cidade, no campo, na floresta.
Terminada a leitura, tratei de passar o livro a um famoso escritor português, António Alves Redol (outro Antonio), que o leu com entusiasmo, passando a recomendá-lo a quantos estivessem a sua volta. A livraria lisboeta se deu bem. Teve que importar mais exemplares do "Quarup".
Enquanto isso, eu pegava um navio de volta, para Santos. E para chegar a São Paulo agitada. Estudantes na rua, apanhando da polícia. "Terra em Transe", de Glauber Rocha, no cinema. Plínio Marcos no Arena. Zé Celso lotando o Oficina, que atraía os braços armados (e mais ou menos clandestinos) da repressão.
Ao fundo, eu via as páginas de "Quarup". Que acabaria se tornando um romance de antecipação, pois termina com o seu personagem principal, o padre Nando, partindo para a luta armada. O que ainda não havia acontecido. Mas ia acontecer.
Aí pelos começos dos 70, eu me vejo de novo com as mãos e os olhos em outro romance de Callado, o "Bar Don Juan", título sabidamente inspirado no já lendário Antonio's, reduto da esquerda festiva, que outro dia fechou as portas, no Leblon. Foi em Ubatuba, no litoral paulista. Uma semana. Sozinho. Numa casa emprestada por um casal amigo, Eunice Ricci e José Roberto Filipelli. Naquela casa, eu tinha unicamente por companhia o barulho do mar, uma máquina de escrever e... o "Bar Don Juan", que lia e relia quando me cansava do teclado, na tentativa de começar o meu primeiro romance.
E, quando ele saiu em 1972, o jornalista Galeno de Freitas, aquele que foi da Folha e morreu bestamente num acidente de carro em Goiás, combinou um encontro entre o estreante e o muito admirado autor de "Quarup" e "Bar Don Juan". Lamento informar, porém, que esse encontro foi um vexame. O tal estreante abusou da generosidade escocesa do dono da casa, tropeçou no excesso de emoção e, ao gesticular desmedidamente, derrubou um cinzeiro, espalhando cinza e baganas sobre um piso impecável.
O elegante Antonio Callado fez de conta que não viu nada. A finíssima Ana Arruda e seus amigos igualmente bem educados, Nenê e Moacyr Werneck de Castro, também disfarçaram o quanto puderam. Galeno riu amarelo. A professora Sonia (a envergonhada mulher do desastrado) disse que já estava na hora de irem embora. Quanto ao autor estreante em visita ao seu mestre, tudo que queria era que a terra se abrisse para ele entrar por ela adentro.
Foi o começo de uma bela camaradagem pela vida afora. E tudo porque Antonio Callado era um cavalheiro. O mesmo cavalheiro que abriu uma vertente no romance brasileiro pós-Guimarães Rosa. O escritor que fez uma viagem inversa à de nordestinos e amazônicos, partindo do seu universo cosmopolita para desbravar, literária e politicamente, os fundões do Brasil. (Outra vertente caberia a Clarice Lispector, com seu mergulho psicológico.) Corro os dedos nos seus livros na minha estante: "Reflexos do Baile", "Expedição Montaigne" "Sempreviva", "Memórias de Aldeham House" etc. É uma viagem longa e profunda. A hora é boa para reler Antonio Callado. E redescobrir o Brasil.

Antonio Torres é escritor, autor de "Um Táxi para Viena d'Áustria" (Companhia das Letras), entre outros.

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