São Paulo, domingo, 9 de fevereiro de 1997
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O presidente e a imprensa

CELSO PINTO

Quais os limites dentro dos quais a imprensa deve exercer seu poder de crítica ao governo?
O presidente Fernando Henrique Cardoso aceitou entrar nesse terreno escorregadio, no discurso que fez a uma platéia de jornalistas e donos de jornais presentes ao Encontro Anual de Entidades Jornalísticas, em Porto Alegre, na quinta-feira. Foi muito além do protocolar e acabou esbarrando em conceitos, no mínimo, intrigantes.
A liberdade de imprensa, a seu ver, é vital para a democracia, especialmente numa sociedade de massas, como a contemporânea, onde as expectativas de melhoria de vida são, ao mesmo tempo, amplas e fragmentadas. Nesse contexto, o papel nobre da imprensa seria o de traduzir essas aspirações fragmentadas da sociedade em demandas políticas. Aos partidos caberia transformar essas aspirações meio caóticas numa visão global de mundo.
Outro papel legítimo da imprensa é ser o que FHC chamou de "fator irritante", em sua crítica aos governantes, ao fazer o papel de oposição quando ela não existe, e ao levantar temas que não estão colocados no plano político.
E qual o limite para o uso legítimo do poder de irritação da imprensa? A "boa-fé", segundo o presidente. Com boa-fé, a "crítica irritante" tem que ser engolida como válida. Mas quem deve julgar o grau de boa-fé numa crítica irritante? O próprio governo? A sociedade? Quando os jornais passaram, por exemplo, a pedir a cabeça do ex-presidente Collor, estavam sendo irritantes de boa ou má-fé?
O presidente lembrou que o governo, os políticos e a imprensa devem exercer seu poder sem arrogância e sem supor que podem agir sozinhos. Deveriam caminhar para uma "convivência harmônica", não no sentido de estar de acordo, mas de ouvir o argumento do outro. "E, quando for o caso, ceder, pelo argumento. E, mesmo que não seja só pelo argumento, seja pela compreensão do momento e da necessidade de esperar um pouco para dar outro passo adiante", argumentou.
Mas quem exatamente é capaz de definir que o momento indica a necessidade de se esperar para dar outros passos? O governo? Tanto os políticos quanto a imprensa podem, de boa-fé, achar exatamente o contrário: que o momento é de dar novos passos, não de harmonizar. Nesse caso, qual a fronteira para a imprensa usar de forma democrática, não arrogante, e de boa-fé, seu "poder de irritação"?
Ninguém discute as credenciais impecáveis do presidente como um democrata. O que sua análise mostra é que o conceito de liberdade de imprensa sofre do mesmo problema do conceito de democracia. Quanto menos adjetivados e qualificados eles forem, melhor.
O Equador e o mercado
A grave crise política no Equador, com o possível afastamento do presidente Abdalá Bucaram, foi a primeira nuvem na América Latina, desde que a saída de Domingo Cavallo do comando econômico argentino foi absorvida, sem maiores sustos, em meados do ano passado. A crise atual, contudo, foi solenemente ignorada pelo mercado internacional de títulos latino-americanos.
Por pelo menos duas razões. Os papéis do Equador têm um peso muito pequeno na carteira dos grandes investidores. Além disso, existe tanto dinheiro sobrando no mercado, e tanto otimismo, que ninguém está preparado para aceitar más notícias.
Existe um dado na crise do Equador, contudo, que mereceria alguns minutos a mais de reflexão dos mercados. Ela rompeu uma escrita inaugurada pelo presidente Carlos Menem quando foi eleito, em 89, presidente pela primeira vez na Argentina e seguida por Rafael Caldera, depois de eleito presidente da Venezuela: não importa quão populista seja o discurso ou o partido do candidato à Presidência. Assim que ele é eleito, esquece o discurso de campanha, chama um economista liberal e segue a cartilha que agrada o mercado.
Bucaram tentou a mesma receita. Eleito com um discurso populista, chamou Cavallo para preparar uma reforma econômica liberal. Quando ela foi posta em prática, contudo, houve grita geral, e, mesmo voltando atrás, o presidente pode perder o emprego.
O episódio reforça a teoria cada vez mais popular, inclusive no Banco Mundial, de que a América Latina está com cansaço das reformas, especialmente em função de seu baixo impacto, em vários países, na melhoria da distribuição de renda e na retomada do crescimento.

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