São Paulo, domingo, 9 de fevereiro de 1997
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Contrabando em alta

ANTONIO OLIVEIRA SANTOS

Prática milenar no campo das contravenções e do crime, o contrabando é um desafio permanente às autoridades do comércio internacional.
De um modo geral, é tolerável esse comércio clandestino praticado em pequenas quantidades, como as que usualmente acompanham os viajantes de regresso de suas férias com a família ou quando, nas zonas fronteiriças, têm o sentido do abastecimento rotineiro de subsistência, que não interfere com a vida normal do comércio. Até porque o custo de sua fiscalização seria antieconômico.
Entretanto, em países em desenvolvimento, como o Brasil, que necessitam praticar tarifas aduaneiras mais elevadas para proteger a indústria nascente e defender o trabalho nacional, o contrabando pode assumir proporções acintosas e insuportáveis, pelas distorções que provoca.
Alimenta uma crescente economia subterrânea, que não paga impostos, não recolhe as devidas contribuições sociais e estimula uma forma de ocupação da mão-de-obra sem registro regular, sem carteira de trabalho, colocada à margem dos benefícios sociais.
Afora os casos típicos de crime organizado, como drogas e armas, o contrabando que se traduz pela evasão de impostos é também estimulado pela disparidade entre os preços dos produtos importados e os similares nacionais.
Essa disparidade de preços resulta, basicamente, da pesada carga tributária e social dos países importadores, mas sofre, igualmente, os chamados "custos de transação", em que sobressai o peso da burocracia, que também enseja todas as formas de corrupção.
É extremamente difícil ter uma estimativa confiável do que representa o contrabando em termos do valor total das mercadorias e serviços transacionados, cuja avaliação acaba sendo feita por métodos indiretos.
Ao tempo da reserva de mercado na informática, quando o "custo da transação" era infinito para a economia formal, o Paraguai figurava como o maior importador de computadores pessoais de toda a América Latina. Era óbvio que, dadas as dimensões da economia paraguaia e sua população, o destino final dos microcomputadores estava do outro lado da fronteira, que não era nem o argentino nem o boliviano.
Esse "comércio formiga" sempre existiu e, muitas vezes, muda de sentido, conforme a diferença de preços de um lado ou do outro da fronteira, mas, de um modo geral, restrito a alguns produtos alimentares e combustíveis.
Durante os anos de forte recessão no Brasil, nos anos 80 e início dos anos 90, com o agravamento do desemprego, o "comércio formiga" tomou um vulto impressionante, em torno de US$ 8 bilhões anuais, segundo estimativa indireta de dados do Banco Central, citados recentemente pelo jornalista Celso Pinto.
A legislação brasileira tem procurado dar um tratamento adequado a esse tipo de comércio. O decreto-lei 2.120/84 estabeleceu, como regra básica, ao tratar da bagagem do viajante, que esta é isenta de tributos, dentro das condições e limites fixados pelo Ministério da Fazenda, sempre e quando os bens que fazem parte da bagagem sejam para uso próprio e não destinados ao comércio.
A Secretaria da Receita Federal, por instrução normativa de 19/10/84, estendeu o conceito de bagagem do viajante ao comércio de subsistência fronteiriço, o "comércio formiga", com a restrição de a isenção alcançar somente os bens produzidos no Brasil ou nos países limítrofes. Uma portaria editada em 1995 requer a apresentação da fatura ou nota de compra para o benefício da isenção, que não pode ser usufruído mais de uma vez em cada mês. Duas instruções normativas fixaram, no caso de o viajante ingressar no país por via terrestre, fluvial ou lacustre, o limite de US$ 250, logo depois reduzido para US$ 150.
Rigorosa como possa parecer, essa pesada regulamentação não produziu maiores efeitos na limitação desejada, por muitas razões e falhas de administração. Uma dessas falhas encontra-se na confusão conceitual entre "sacoleiro", bagagem de viajante e comércio de subsistência de populações fronteiriças.
É essa ambiguidade conceitual que torna a peregrinação dos sacoleiros uma atividade explícita e submissa a todo um corpo de legislação tributária e cambial.
Mas é evidente que esses "sacoleiros" não são viajantes nem praticam um comércio de subsistência. Revendem bebidas, eletrodomésticos, componentes para montagem de microcomputadores e toda sorte de brinquedos eletrônicos, produzidos em terceiros países, que vão parar nas mãos dos ambulantes que se aboletam nas calçadas das grandes cidades brasileiras.
Afinal, uma cifra que pode girar ao redor dos US$ 8 bilhões anuais e representa o dobro do déficit oficial da balança comercial constitui um desvio flagrante em nossas contas cambiais, além dos danos ao comércio formal e ao desemprego da mão-de-obra nacional.
Ainda mais, calcula-se que a renúncia fiscal da ordem de 30% representaria algo como US$ 2,4 bilhões, que correspondem, aproximadamente, à metade da arrecadação que se espera obter com a malsinada CPMF.
Não fosse o vulto alcançado por essa atividade que faz parte da economia subterrânea, poder-se-ia até mesmo aceitar que, em momentos difíceis de nossa conjuntura econômica, o "comércio formiga" pudesse ser uma válvula de escape para a questão social do desemprego. Mas, pelo visto, o "comércio formiga", como o próprio nome indica, tornou-se uma praga para a vida nacional.
É imperioso, pois, que esse falso comércio seja eliminado, e as transações fronteiriças, reduzidas a suas proporções normais, a fim de que o comércio regular e legal deixe de ser violentado pelo contrabando e possa desenvolver-se sob regras estáveis e confiáveis. Esse deverá ser, sem dúvida, um objetivo prioritário para assegurar um crescente intercâmbio entre o Brasil e os demais parceiros do Mercosul.

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