São Paulo, domingo, 9 de fevereiro de 1997 |
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A exposição ambígua da poética
NELSON ASCHER
Seus poemas reúnem elementos de um discurso filosófico que não se deixou engaiolar num prosaísmo árido e o "cantabile" de canções que nada têm de ingenuamente romântico. Não o fazem, porém, todos da mesma forma nem em proporções idênticas. Há, em "Guardar", baladas em metros curtos e regularmente cadenciados e textos em verso livre; há uma vertente epigramático-irônica e uma sonetístico-rebuscada, tudo oscilando entre um pólo que, mais do que barroco, é maneirista na complexidade sintática de seu desenvolvimento e um outro, oposto, que poderia ser chamado de celebratório. Como diz Silviano Santiago em sua apresentação: "Antonio Cicero é um herdeiro das superfícies e das profundezas". Vários são os recursos mobilizados no correr do livro. A paronomásia merece um lugar de honra em poemas como "Rapaz". "Hesitante entre o mar e a mulher/ a natureza o fez rapaz bonito,/ rapaz pronto para amar e zarpar.// Também ao poeta apraz/ o ser rápido e rapace" -um texto em que o "Rapaz" do título reaparece em "zarpar", "apraz", "rápido", "rapace", estabelecendo um nexo subterrâneo que, sem escancará-la, patenteia a obsessão do poeta por aquilo que observa. Recurso parecido multiplica os sentidos de um poema breve como "Voz": "Orelha, ouvido, labirinto:/ perdida em mim a voz de outro ecoa? Minto:/ perversamente sou-a". A chave aqui é a seguinte: "sou-a" ecoa "soa" de modo a que, no poema, realize-se, primeiro, uma fusão entre soar e ser, concretizando o eco que aparecera acima em forma verbal, para em seguida materializar "perversamente", na confusão entre "eu" e "outro", o próprio labirinto (sonoro? do ouvido?) em questão. Um labirinto que, por sua vez, ecoa outros. Este parágrafo aqui -na sua minudência descritiva- é mais uma prova de quão distintos são os instrumentos da prosa dos da poesia e de como o poeta mobiliza estes últimos para realizar, com ilusória singeleza, operações complicadas numa coletânea que reevoca temas gregos clássicos sem derrapar no kitsch neoparnasiano; que é capaz de envolver um surfista num soneto sem ser artificial ou artificioso; que se equilibra no limite estreito entre o amoroso e o erótico, sem esquecer que: "Qualquer poema bom provém do amor/ narcíseo". "Guardar", porém, é um livro que, para revelar todos os seus segredos, requer atenção dobrada, ou melhor, um olhar atento, pois, como o autor diz no poema inicial que dá nome ao conjunto: "Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la/ Em cofre não se guarda coisa alguma./ Em cofre perde-se a coisa à vista./ Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la...". Paradoxal? Sim e não. Claro que se guardam coisas num cofre: segredos guardados em geral por um número codificado que também se chama "segredo". E é claro que a retina guarda, por alguns segundos, alguma coisa ou, pelo menos, sua imagem que, depois, passa à memória que pode igualmente guardá-la. Acontece que o verbo "guardar" vem do germânico "wardon", cujo sentido era mais ou menos o de prestar atenção em algo com intuito de protegê-lo, resguardá-lo, sentido que, em português, resultou em "esguardar", ou seja, ter consideração por, olhar atentamente, e, em italiano, deu "guardare", olhar. Em inglês, "to look after" é tomar conta. Portanto, como o poema explicita, guardar é antes de mais nada olhar, ainda mais porque só pode ser devidamente guardado o que está sempre não-escondido, mas à vista, debaixo dos olhos. Em suma, o que o título do livro anuncia ao leitor e o poema título desenvolve se traduz simplesmente por: "Em guarda!" e "Atenção!", "olhe bem, senão tudo o que vem adiante se perderá, nada será guardado..." Este tema, que inicia e percorre o livro, retorna em contraponto ao poema "Guardar" num outro, intitulado "Minos", em que o rei que mandou edificarem uma prisão "sui generis" para o seu monstruoso filho, após declarar "Não ocultei o monstro", enumera quantos acessos -"canais estradas viadutos ferrovias funiculares"- construíra para que se pudesse chegar ao Minotauro. E é na reiteração minuciosa e delirante dos acessos que se configura que estes mesmos constituem o próprio labirinto. Ou seja, rejeitando a facilidade e reafirmando o difícil da poesia, o poeta como que diz que abrir demasiadamente o sentido equivaleria, paradoxalmente, a cifrá-lo, obscurecê-lo, fechá-lo. Texto Anterior: CONTESTADORES Próximo Texto: As amigas de Sheherazade Índice |
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