São Paulo, domingo, 9 de fevereiro de 1997
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As amigas de Sheherazade

DAISY WAJNBERG
ESPECIAL PARA A FOLHA

As mulheres são espertalhonas incorrigíveis. Em "As Artimanhas das Mulheres", coleção de contos árabes do século 14, elas desfilam desafiantes, sempre prontas a arquitetar tramóias que dissimulem seus desejos escusos. Um verdadeiro leque de adúlteras, que mal se contém em suas ardentes paixões, transbordantes de um desejo animalesco -ora se transmutam em ladinas contumazes ou tagarelas sem papas na língua.
O texto, estabelecido e traduzido pelo arabista René Khawam, é assinado por um certo Abd al-Rahim al-Hawrani, autor praticamente desconhecido. Já Khawan, 80, sírio radicado na França, conhece profundamente a literatura árabe medieval e é um dos grandes tradutores das "Mil e Uma Noites". Ao longo de 39 anos, dedicou-se ao estabelecimento da edição desta obra -a primeira delas lançada em 1965-67 e a outra, que considera definitiva, em 1986-87.
Em todas as sua pesquisas, Khawan realiza uma minuciosa garimpagem de manuscritos. Ele visa à reconstrução dos textos supostos como originais, numa autêntica arqueologia da narrativa. Delicada e complexa tarefa, num texto que prima pela grande multiplicidade de versões, como as "Noites".
Neste caso, cada manuscrito, edição ou mesmo tradução da obra -todos diferem entre si, tornando quase impossível conferir consistência última e unidade definitiva a esse corpo etéreo de histórias, que teimam em se recompor em surpreendentes desenhos. Mesmo porque este tipo de literatura -a de "contos extraordinários"- brotava na época em várias coleções, numa colagem de narrativas cuja datação e procedência eram as mais heterogêneas.
Também capturado pelo fascínio caleidoscópico das "Noites", Khawam não pôde encerrar o seu trabalho na edição de 1987. "As Aventuras de Sindbad, o Marujo", "O Romance de Aladim", bem como alguns contos destas "Artimanhas" (todos publicados pela Martins Fontes) são verdadeiros desdobramentos do seu grande estudo sobre as "Noites".
Compostas, em sua maioria, de pequenas historietas, as "Artimanhas" se agrupam em torno do tema da esperteza inerente às mulheres. Aqui se destaca a conhecida misoginia da cultura islâmica que, convém lembrar, também foi cultivada no medievo ocidental. Mas, para além do ranço moralista e punitivo da ortodoxia religiosa -sempre vigilante quanto aos modos bem liberais da época-, delineiam-se no livro a beleza sinuosa e a obliquidade do gesto feminino, que desliza entre enevoados desejos. Mais uma vez, esses contos nos fazem lembrar de Sheherazade, cuja manha narrativa segue o fio transgressivo das infiéis rainhas que a precedem na cena das "Mil e uma Noites".
"As Artimanhas" fazem parte do mesmo caldeirão, onde se preparou um encantamento de picantes sabores. Boa parte de suas narrativas, no entanto, não têm grande qualidade literária. Na verdade, os melhores são os dois últimos contos, ambos presentes em várias traduções das "Noites".
Em "Duas Mulheres Envolvidas num Assunto de Estado" retoma-se a história do massacre dos Barmécidas, influente família de origem iraniana, que tantos vizires deu à dinastia abácida e cujo poder chegou a ameaçar o sultão Harum al-Rachid. E no belo conto "O Amante e a Amante" reencontramos uma pérola das "Noites", conhecida como "História de Aziz e Aziza". Incluída no filme "As Mil e Uma Noites", de Pasolini, ela conta a história da abnegada heroína que, abandonada pelo primo no dia marcado para seu casamento, dedica-se a interpretar os enigmáticos sinais de amor lançados pela dama por quem ele se apaixonou.
Em suma, estas artimanhas de agora nos atiram de volta às artes de Sheherazade e sua infindável teia de histórias.

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