São Paulo, domingo, 9 de fevereiro de 1997
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Bebês, robôs e intenções

HORST HENDRIKS-JANSEN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Meu objetivo neste livro é edificar uma crítica metodológica e filosófica do paradigma computacional e lançar as fundações de uma explanação científica alternativa para o comportamento inteligente. Como é que nós nos tornamos o tipo de criatura que é capaz de fazer escolhas morais e julgamentos estéticos, experienciar empatia, assombro e a sensação de responsabilidade? Como é que um bebê humano se desenvolve em um adulto que apresenta tais traços e habilidades, mas não um filhote de chimpanzé?
"Catching Ourselves in the Act" (Pegando-nos no Ato) tenta resolver esta questão e construir um novo arcabouço conceitual para uma explanação científica da mente. Alinhavando temas de pesquisa oriundos da robótica situada, da etologia e da psicologia do desenvolvimento foi possível construir uma sólida teoria científica que considera o pensamento humano como dinâmico, situado, corporificado e enraizado historicamente. Minha tese fundamental é que os bebês humanos nascem com padrões de atividade típicos da espécie, que evoluíram para atrair a atenção dos adultos, seduzi-los a interpretações intencionais sobre o comportamento dos bebês e, desta forma, estabelecer as interações impregnadas de significado que são essenciais ao aprendizado humano. Muitos desses padrões iniciais de atividade desaparecem bastante cedo na vida. Eles parecem ter o propósito específico de lançar o bebê em um ambiente de adultos que pensam em termos intencionais, comunicam-se por meio da linguagem e manipulam ferramentas e artefatos.
Por 40 anos o modelo computacional da mente tem sido a ênfase em psicologia cognitiva e na inteligência artificial. Examinando os pressupostos ocultos e princípios explícitos sobre os quais esse modelo se baseia, é possível mostrar que os argumentos que têm colocado as máquinas de Turing e vários outros formalismos computacionais como os componentes centrais de uma teoria científica não se sustentam a partir de um julgamento filosófico e metodológico. Durante a última década, também se tornou aparente que a inteligência artificial tradicional (incluindo o conexionismo) apresenta sérias limitações como uma ferramenta de engenharia para a construção de sistemas que sejam capazes de responder em tempo real a ambientes abertos e que mudem dinamicamente (o tipo de ambientes em que, poder-se-ia argumentar, a inteligência é realmente necessária).
Há um crescente consciência na comunidade de inteligência artificial que as várias disciplinas agrupadas sob o título de Vida Artificial parecem indicar o melhor caminho a ser seguido. No entanto, os pesquisadores mais produtivos nestas áreas têm se ocupado muito com problemas de implementação e devotado menos esforço a temas fundamentais. Muito pouco tem sido escrito sobre as premissas filosóficas, etológicas e evolutivas que sustentam esse novo campo ou sobre as evidências psicológicas que podem ser utilizadas para lhe dar suporte.
Analisando cada um destes temas, percebem-se concepções inadequadas sobre computação, representação, evolução e sobre os requisitos para uma explanação científica do comportamento humano e animal, o que permite efetuar uma síntese baseada em princípios que objetivam colocar o paradigma emergente sobre uma sólida base. Para este fim, desenvolvi dois conceitos, bem definidos e empiricamente amparados, quais sejam, "atividade situada" e "emergência interativa", a partir de uma análise das pesquisas sobre agentes autônomos, etologia e sobre o modo histórico de explanação que a teoria da evolução exemplifica.
Pode-se dizer que seres humanos vivem em um ambiente natural de significados. Uma explanação científica do comportamento humano, portanto, depara-se com dois problemas fundamentais. Ela tem de confrontar o enigma da intencionalidade -explicar de onde vem o fato de que nossas ações, desejos e crenças possam ser sobre algo- e também necessita prover entidades explanatórias ou tipos naturais que levarão em conta a diversidade do comportamento humano, mas que ainda podem, apesar disto, estar ligadas a um ramo estabelecido das ciências.
A psicologia computacional tenta solucionar estes problemas com "representações internas". Propõe que a mente deva ser conceitualizada como um Sistema de Símbolos Físicos, cujas unidades sintáticas são manipuladas por uma máquina puramente sintática. A intencionalidade de nosso comportamento é, portanto, uma ilusão. O mecanismo controlador não sabe que seu comportamento é sobre objetos, eventos e situações com propriedades semânticas -ele apenas se comporta de um modo carregado de significado, foi programado para ser assim.
Isso levanta o problema de como tal comportamento semanticamente interpretável se estabeleceu originalmente. As respostas de maior sucesso a essa questão têm feito referência à teoria da seleção de Darwin. Uma teoria da correspondência do significado é suportada por um raciocínio evolutivo. Assume-se que criaturas cujas representações internas não tenham se alinhado apropriadamente aos objetos, propriedades e situações do mundo tenham sido eliminadas muito tempo atrás em sua luta pela sobrevivência. Mas eu argumento que tal estratégia não funciona.
É impossível construir uma teoria baseada em formalismos computacionais e representações internas, estabelecidas por meio de seleção natural, que explique por que seres humanos respondem a mesas como mesas, podem conceber como beleza, grandiosidade e sofrimento em objetos puramente físicos. Os dois problemas mencionados anteriormente precisam ser confrontados de maneira diferente. A seleção natural pode, de fato, prover a legitimidade científica que estamos procurando, mas para isso precisamos utilizar unidades alternativas de explanação, tipos naturais distintos.
Trabalhos recentes em robótica situada têm revelado que comportamentos que tenham um significado associado (mesmo que, reconhecidamente, de um tipo ainda bastante primitivo) podem emergir sem a necessidade de representações internas. É possível construir uma criatura artificial que se move acompanhando paredes sem que se tenha que colocar uma representação de parede dentro de seu mecanismo de controle. Não há qualquer programa explícito dentro do robô que o instrua a acompanhar paredes; nenhuma definição formal de parede é necessária para produzir esse comportamento. O robô não acompanhará a mesma parede da mesma forma em cada ocasião, mas pode-se estar seguro de que ele responderá a paredes com um comportamento que não deixa dúvidas sobre o fato de que elas não representam algo que possua alguns significado em seu meio ambiente.
O comportamento de acompanhamento de paredes que emerge interativamente cria um ambiente perceptual de mais alto nível para o robô, que consiste de correlações confiáveis entre as leituras de seu sonar e as regularidades temporais de seus próprios movimentos. Estas são características dinâmicas, de segunda ordem, que apresentam uma estrutura reconhecível tanto no espaço quanto no tempo. Elas permitem que o robô identifique marcos específicos em seu meio ambiente, os quais apenas indiretamente correspondem a particularidades objetivas do mundo. Os sistemas de detecção de marcos e navegação do robô dependem, portanto, do fato de que o mecanismo de acompanhamento de paredes faz com que ele se mova autonomamente de maneira confiável, resultando em correlações entre as leituras do sonar e a estrutura de seus movimentos.
Em etologia, tais regularidades de comportamento são chamadas de padrões de atividades típicos da espécie. Pesquisas recentes com recém-nascidos têm mostrado que, assim como outros animais, serem humanos nascem com um amplo repertório desses padrões reconhecíveis de comportamento ou o desenvolvem logo após o nascimento. Muitos deles são particulares aos seres humanos e parecem ter sido selecionados por seu poder de atrair a atenção de adultos, que pensam de forma intencional e que assumem espontaneamente que, também o bebê, já é um ser intencional.
Esta combinação dos padrões corretos de atividade e a atribuição de significado dada a elas por aqueles que cuidam dos bebê permite que interações humanas específicas sejam estabelecidas, as quais criam um ambiente perceptual de alto nível para o bebê, de natureza análoga ao criado pelo comportamento de acompanhamento de paredes dos robôs mencionados. Os padrões de atividade parecem ter sido selecionados por um ambiente de interações sociais e culturais porque possibilitam que o bebê seja autoconduzido para dentro deste ambiente. Eles incluem vários padrões vocais e gestuais e uma imensa gama de expressões faciais que parecem estar adaptadas para provocar diálogos pré-linguísticos com significado, os quais criam um contexto interativo para a compreensão e a produção da linguagem.
"Pegando-nos no Ato" lança, portanto, uma explanação científica do desenvolvimento e do aprendizado, que forja um relacionamento entre as teorias contextuais do significado propostas recentemente em sociologia e antropologia e as ciências da etologia e da robótica situadas. As noções de atividade situada e emergência interativa fornecem um meio de enraizar a intencionalidade por meio da seleção natural. Parece que há, de fato, uma forma de pegarmos a nós próprios no ato, e que essa forma envolve padrões de atividade específicos da espécie, adaptados a um mundo intencional.

Onde encomendar:
"Catching Ourselves in the Act" (MIT Press) pode ser encomendado, em São Paulo, à Livraria Cultura (tel. 011/285-4033).

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