São Paulo, domingo, 9 de fevereiro de 1997
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Sem maniqueísmo na manhã tropical

ANTONIO RISÉRIO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Permanece -ou melhor: estaciona- na adolescência intelectual quem se contenta com fantasiar a história nos termos de uma ação protagonizada por bandidos e mocinhos, ou carrascos e vítimas. A observação, banal, ocorre-me por conta de certas conversas que venho ouvindo (e textos que venho lendo), à medida que principia a surgir, em nosso horizonte mental, a figura dos 500 anos do Brasil, meio milênio do primeiro encontro de portugueses e índios nos arredores de Porto Seguro, na Bahia.
Mas é que há mesmo uma espécie de "neo-rousseauismo" entranhado e generalizado em meio as nossas minorias "progressistas" ou "radicais" -isto é, em meio àqueles que, até há bem pouco tempo, se instalariam confortavelmente sob o guarda-chuva da palavra "esquerda". No quadro esquemático que muitas dessas pessoas nos oferecem, o "birth trauma" brasileiro aparece como um filme nítida e rigorosamente bicolor. De um lado, o estuprador branco, o conquistador português, estruturalmente assassino. De outro lado, o índio eco-feliz, o "bon sauvage", essencialmente angelical.
Nesse filme, de personagens planas e enredo linear, os portugueses desceram de suas caravelas, instauraram a violência nos trópicos e tomaram a terra dos índios. Resta, agora, reparar o crime. E para isso estão aí os justiceiros de plantão, os nobres defensores dos fracos e dos oprimidos, que de uns tempos para cá trocaram o "proletariado" por negros, índios, mulheres, bichas etc. E assim temos mais um capítulo da eterna luta do Bem contra o Mal.
Ora, ninguém será suficientemente tolo, a essa altura, para pretender negar a violência da conquista -ou o genocídio de populações ameríndias. Não é esta a questão. O que quero sublinhar, aqui, é a simplificação caricatural da história. Se quisermos nos pensar para valer, em toda a nossa funda e profunda complexidade, não poderemos simplesmente adotar um ponto de vista hollywoodiano sobre a nossa configuração como povo e país. A aproximação dos 500 anos, incitando ao repensamento crítico da aventura brasileira, deve ir ao menos além da mentalidade novelesca, "neo-rousseauista", que ganha em clareza na proporção mesma em que descarta as complexidades da história.
O problema é que, em matéria de história, o buraco é sempre mais embaixo. Para começo de conversa, os índios que habitavam a orla tropical brasílica, na passagem do século 15 para o 16, não eram nenhuns santinhos. Podem ter sido belos e bravos, mas nunca foram, exatamente, bonzinhos. Pelo contrário. É com eles que tem início a história da violência nos trópicos atualmente brasileiros. A conquista tupinambá da Bahia (Kirimurê) é um exemplo disso. Sim: conquista. Quem conhece o assunto, ainda que superficialmente, sabe que os "tapuias" (uma denominação geral para índios não-tupis) eram senhores daquela região, até que dali foram violentamente expulsos pelos tupinaés. Em seguida, os tupinaés foram esmagados pela implacável máquina de guerra dos tupinambás. Nesta sequência, a invasão portuguesa foi, no mínimo, a terceira onda invasora que varreu as terras hoje baianas.
A escravidão não é um "karma" de Portugal, mas da espécie humana. Não existem povos-anjos e povos-demônios, como parece crer (ou finge acreditar) o maniqueísmo ou esse neo-romantismo para debutantes mentais que quer nos passar uma imagem tão singela quanto falsa dos primeiros momentos de nossa formação. Acho que a bandeira do contraste agudo e radical entre o Senhor Branco e o Índio dos Trópicos foi política e culturalmente importante, na década de 70 -momento especial de demarcação de diferenças, em função da explicitação da pluralidade brasileira. Mas não será com bandeiras táticas, conjunturais, que melhor nos entenderemos a nós mesmos.
Houve portugueses e portugueses, índios e índios. A figura do europeu-criminoso simplesmente se estilhaça se nela tentamos enfiar, por exemplo, a personalidade de Diogo Álvares Caramuru, o jovem da vila de Viana que aqui naufragou em inícios do século 16. E, quando dizemos que os portugueses tomaram a terra dos índios, temos que perguntar: de que índios? Dos tupinambás... que tinham tomado a terra dos tupinaés, que tinham tomado a terra dos "tapuias" etc. Aliás, também em Portugal, em toda a Península Ibérica, havia os marginais, os excluídos -e foram estes os primeiros a desembarcar por aqui. Ou seja: não podemos tratar um povo como uma entidade coesa e homogênea (e muito menos com uma disposição inata para a exploração e o sadismo) -como se um povo pudesse ser algo assim como aquele monólito do "2001" de Stanley Kubrick.
Não se trata, repito, de negar a violência da conquista lusitana dos trópicos. Longe disso. O genocídio dos índios, com o avanço da colonização estatal, é um fato. O Estado avançou, desestruturando as sociedades indígenas e suprimindo (ou tentando suprimir) suas dimensões simbólicas. Investiu contra o que viu pela frente, a fim de concretizar, a qualquer preço, um projeto de transplantação cultural, de reprodução de Portugal nos trópicos. Não é isto o que estou discutindo. O que quero enfatizar, no momento, é uma outra coisa. E aqui chegamos ao ponto central dessa conversa.
Ao hollywoodianizar a história em termos de bandido e mocinho, fazendo de Portugal a encarnação suprema da vilania e do vício, acabamos por fechar os olhos a tudo que venha do conquistador, do estripador europeu -e assim levantamos automaticamente a guarda diante de tudo o que diga respeito à cultura do colonizador. Dito de outro modo, nossa visão do mundo português e da cultura portuguesa se tornam ideológica e psicologicamente carregadas, quase ao ponto da cegueira. Porque a cultura portuguesa é o Mal, a agressão ao "bon sauvage", a gangrena ou o câncer no azul ameríndio dos trópicos. Por essa via, mutilamos a compreensão de nós mesmos, como produtos e herdeiros de um encontro intercultural. A desgraça da conquista e a desgraça da cultura do conquistador se convertem em mitos a-históricos. São entidades perversas, demoníacas. Ponto final.
E aqui me lembro de Octavio Paz falando de Hernan Cortés: "Apenas Cortés deje de ser un mito ahistórico y se convierta en lo que es realmente -un personaje histórico-, los mexicanos podrán verse a sí mismos con una mirada más clara, generosa y serena". É claro que não tivemos nenhum Cortés por essas bandas tropicais. Mas é preciso que ultrapassemos a fantasia estática bandido/mocinho para que também possamos nos ver com um olhar mais claro. Como diria Barthes (se não me falha a memória), deixemos o maniqueísmo hollywoodiano para aqueles que, em vez de escolher a análise difícil, se comprazem com a indignação fácil.
Em suma: já está mais do que na hora de superar o edipianismo em nossa relação com Portugal. Para que possamos nos aproximar melhor -com rigor crítico, sim, mas também com "intelletto d'amore"- dessa cultura sincrética que ainda agora vamos tecendo, ao abrigo e à luz da língua portuguesa, ou desse neolatim afro-ameríndio e etc. que falamos nesta parte do mundo.

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