São Paulo, domingo, 9 de fevereiro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A face escura do engajamento

TZVETAN TODOROV
ESPECIAL PARA A "NEW REPUBLIC"

A literatura não é como a ciência. São outros os seus meios para levar ao conhecimento. O escritor pode projetar-se na alma de pessoas, históricas ou fictícias, e fazer-nos revelações que, ainda que não sejam provadas, podem algumas vezes ser mais esclarecedoras do que o vasto acúmulo de fatos gerado pelo historiador, psicólogo ou sociólogo. Pelos atalhos da intuição e imaginação, o escritor pode sair-se bem onde o cientista falha.
O escritor tem, ademais, a vantagem de seu modo de expor: quer narrando um evento específico, quer juntando elementos díspares em uma única imagem, ele trabalha com a mente do leitor, conduzindo-a ao terreno fértil da interpretação -ou seja, à descoberta de um segundo sentido sob a superfície do texto. O conhecimento literário não é superior ao científico, mas tampouco é menos real.
Sou um grande apreciador dos romances de J.M. Coetzee, o que me levou a seus ensaios; por isso é com pesar que observo ter Coetzee optado, nos ensaios sobre censura, pela renúncia à sua identidade literária, refletindo, isso sim, como um analista político, um historiador cultural ou um crítico literário. Esse livro não é obra do romancista excepcional, mas de um cientista social bem comum.
Encontrei uma única página atribuível ao romancista, e a qualidade desta fez-me sonhar com todas as outras que Coetzee poderia ter produzido sobre tema tão importante.
Nessa bela página Coetzee faz uma descrição do ego. Em vez de resumir teorias psicológicas, ele nos diz que o ego é "um zoológico no qual reside uma multidão de feras, sobre as quais o ansioso e sobrecarregado tratador, a racionalidade, tem muito pouco controle". Mais: "À noite o tratador dorme e as feras perambulam pelos sonhos". Algumas dessas feras são "semidomadas, mas ainda assim primitivas versões traiçoeiras do ego, cada qual com seu próprio zôo interior sobre o qual não tem controle completo...". Tal descrição não dá água na boca? Por que não há outras assim? Será puro acaso que esta página seja também a única em que Coetzee evoca sua própria experiência como escritor sul-africano que trabalhou por muitos anos em um país dominado pela censura?
No resto do livro, que pena, Coetzee não está à altura do escritor que é. Os ensaios que compõem "Giving Offense" foram escritos ao longo de cinco ou seis anos. Não têm em comum nem o tema e nem sequer uma mesma idéia condutora. Coetzee está menos interessado na instituição censura, com seus possíveis acertos (a proteção ao bem comum) e erros (a limitação da liberdade individual) do que na atitude do escritor com relação à censura e sua avaliação da própria situação.
As reflexões de Coetzee são essencialmente críticas. O escritor, todo escritor, gosta de ver a si mesmo como um santo ou um mártir, que valentemente combate um tirano onipotente e abominável. Contudo, de acordo com Coetzee, na realidade a diferença entre os adversários é mínima: são inimigos fraternos, um e outro como imagem no espelho.
Coetzee luta incansavelmente, no livro, contra o mito sentimental do escritor David e o censurador Golias. Ele discute três exemplos de tirania: nazismo (muito brevemente), comunismo e apartheid.
O primeiro é abordado por meio das modernas interpretações de Erasmo. Stefan Zweig proclamava Erasmo como seu modelo e antecessor, argumentando que Erasmo inclinava-se para um humanismo pan-europeu e contra o nacionalismo militar ou fascismo. Observa Coetzee, porém, que para Erasmo mesmo "comungar com um ou com outro" seria uma espécie de loucura -a loucura de assumir uma posição. E conclui com uma interrogação: "A convicção de estar certo faz do indivíduo erasmiano ou do fanático nacionalista-coletivista de Zweig menos ou mais parecidos? Torna-os opostos ou iguais?". Para Coetzee, a evidência sugere o último.
Os exemplos de Coetzee sobre escritores em luta com a censura e a tirania comunistas são mais numerosos e analisados em maior detalhe. Mandelstam temia Stálin, mas Stálin também temia Mandelstam, receando a força da palavra poética que sobrevive aos tiranos. Mandelstam via-se como um poder, e estava certo: o que transpirava entre Mandelstam e Stálin, segundo Coetzee, era "o poder-rivalidade entre poeta e déspota". Não respeitamos agora mais o pequeno Osip do que o grande Josef?
No término de seu ensaio sobre Soljenitsin, Coetzee alerta contra o perigo de denunciar "a casa dos censores ou a casa de Soljenitsin". Em sua visão, as duas são similares. Ao lutar contra seus inimigos, Soljenitsim tornou-se igual a eles. Ele demonstra um desdém pela lei comparável ao dos censores e seu destino "ilustra muito bem a dinâmica da violência mimética espiralada, precipitada por um colapso de distinções". Com efeito, seu ódio por Stálin fez de Soljenitsin um pequeno Stálin; ou, mais precisamente, seus admiradores o reduziram àquele papel, vendo nele somente o intrépido combatente contra a opressão e a mentira.
Similarmente, ao lutar contra o apartheid e respectiva censura, certos escritores sul-africanos não se deram conta de sua imitação inconsciente do inimigo. Assim, sobre André Brink: "É como se o autor tivesse sido infectado pela violência do Estado, e infectado no que diz respeito a seu idioma".
Coetzee informa-nos que os métodos de sua análise são baseados em René Girard, o crítico franco-americano que, em uma série de trabalhos, iluminou as estruturas miméticas da rivalidade. O estudo de Girard sobre rivalidade, porém, foi somente uma parte de sua vasta estrutura filosófica, que culminou em um encômio ao cristianismo. A verdadeira inspiração de Coetzee, ainda que se refira a ele somente de passagem, foi Nietzsche. Foi Nietzsche quem declarou não existirem valores transcendentais, somente a vontade de poder, que a vida é o bem supremo e que a lei é somente uma forma de violência anterior a outras. Foi Nietzsche também quem concluiu que a verdade não existe, que não há fatos, somente interpretações, que são mais ou menos poderosas.
Coetzee concorda com tudo isso. Acreditar na verdade, na visão de Coetzee, é compartilhar da ilusão do censor. "O censor é uma figura de leitor absolutista: ele lê o poema a fim de saber o que significa, para saber a verdade nele contida." Palavras não levam a coisas. "Em última análise, não há 'última análise' na língua: as metáforas resvalam em (ou interpretam) outras metáforas, que resvalam em outras ainda, e assim por diante." Por isso é impossível erradicar o racismo, que é apenas um discurso entre outros. Não podemos fazer o racismo retroceder: podemos somente fazer uma leitura dele.
É em Nietzsche também que se origina o ataque moderno às ambições desmedidas da razão. A razão empenha-se em empurrar às margens da loucura tudo o que diferir de si mesma; mas o conflito entre razão e loucura deve ser reexaminado (como disse Foucault, em sua história nietzschiana da loucura), e os privilégios que a razão se outorga, em detrimento da loucura, são ilegítimos. Segundo Coetzee, devemos reduzir "razão e loucura à condição de gêmeas guerreiras... uma imita a outra". A superioridade com que a razão se aceita é simplesmente uma máscara de sua força -em outras palavras, de sua tirania, que não é diferente de qualquer outra.
Um valor não pode ser superior a outro, pode ser somente mais forte; e a superioridade genuína consiste em renunciar a valores. Os escritores contemporâneos que protestam ruidosamente contra a censura descobrem a necessidade de fugir a tal confrontação em seu trabalho literário.
Assim, o bom Soljenitsin, o romancista, procura não matar seus inimigos, mas viver "subjugando-os, imaginando uma maneira de conviver com as diferenças".
O argumento de Coetzee pode parecer revigorante. Há um perigo real de que se possa vir a parecer com o inimigo ao combatê-lo, na tentativa de combatê-lo melhor. Os combatentes na Resistência francesa, por exemplo, tinham consciência disso. François Mauriac observou em 1943 que "para que se possa estar à altura do inimigo, não nos condena ele a tornarmo-nos exatamente como ele é?". Mesmo na derrota, não nos forçará ele a morrer por dentro somente para ser recriados à sua horrível semelhança?
Vigiar é preciso caso se queira evitar dar uma triste vitória subterrânea ao inimigo que se esperava vencer. Os revolucionários que combatem regimes autoritários concluem que seu nobre objetivo justifica todos os meios, e desta maneira estão prontos a ofender a humanidade com maior gravidade do que os tiranos que abominam. (Dostoiévski não escreveu "Os Possessos" à toa.)
O salto de Coetzee -o salto dessa consciência de perigo à demolição de todos os valores, à renúncia de todas as lutas por serem vãs- é, quem sabe, um salto a que se deve resistir. Foi possível combater Hitler sem no processo começar a assemelhar-se a ele? É difícil acreditar que alguém possa duvidar disso. Mas então é preciso delinear cuidadosamente as consequências dessa possibilidade. Talvez matar os nazistas, sob um certo ponto de vista, foi um mal; mas esse mal foi incomensuravelmente inferior ao impetrado pelos nazistas ao perseguir seus próprios fins. A única maneira de acabar com aquele mal maior foi lutar e vencer. Isso implica o apelo aos padrões morais e filosóficos que nos permitem fazer julgamentos de valor, em vez de ver em toda parte vontades de poder confrontando-se. Todos os males não são iguais.
"Lutaremos até o fim da guerra", declara um membro da Resistência em um dos romances de Primo Levi, "porque acreditamos que guerrear é uma coisa má, mas liquidar os nazistas é a coisa mais justa que se possa fazer hoje na face da Terra". Zweig pode ter se enganado ao desejar alistar Erasmo em seu campo antifascista; mas podemos mesmo ver fascistas e antifascistas como gêmeos, mais iguais do que diferentes?
Quando foi revelado o envolvimento pró-fascista de Paul de Man na Bélgica, nos anos 40, alguns de seus defensores argumentaram que foi para expiar esse erro juvenil que ele mais tarde se sentiu obrigado a renunciar a todo engajamento, toda luta pela articulação de valores, e a desenvolver sua teoria da desconstrução.
Essa conclusão, porém, é inaceitável: uma posição errada não faz de todas as posições suspeitas. Descobrir-se a si mesmo capaz do mal (lição difícil, mas necessária) não deve levar alguém a abandonar a distinção entre o bem e o mal, embora devesse detê-lo de identificar a maldade com os outros e a bondade consigo mesmo. Como o próprio Soljenitsin disse: "A linha que separa o bem e o mal não passa pelos Estados, nem entre classes, tampouco por partidos políticos -mas exatamente em cada coração humano- e por todos os corações humanos". Em termos de moralidade, a recusa do maniqueísmo não assegura a aceitação do relativismo.
O discurso dos dissidentes soviéticos pode algumas vezes ter lembrado o discurso de seus detratores: em ambos os lados o adversário foi acusado de ser mentiroso e louco. Mas nem por isso seus destinos são parecidos. Que semelhança existe entre Stálin, que enviou 15 milhões aos campos, e Osip Mandelstam, que, ao chegar a um, pereceu de exaustão? Entre Soljenitsin, anterior e possivelmente futuro prisioneiro de campo, e a autoridade oficial regozijando-se com a impunidade em suas mãos e nos privilégios decorrentes dela? E que homem ou mulher, que tenha vivido no Ocidente ou no Oriente, poderia descrever a Guerra Fria como o encontro de duas paranóias perfeitamente simétricas?
Prevendo este tipo de objeção, Coetzee preparou sua resposta. "Alguém poderia dizer que, contanto que os rivais se vejam como rivais, suas estaturas objetivas são irrelevantes." Em outras palavras, o mundo objetivo (e consequentemente quaisquer tentativas de se dizer a verdade sobre ele) é de pouca importância: o que importa são as interpretações subjetivas dos vários protagonistas, que têm todos os mesmo status. Porque, se há somente discurso, as reais diferenças então diminuem, e o pequeno Osip se assemelha ao grande Josef.
Para enxergar o absurdo de tal comparação, entretanto, basta lembrar que, além das palavras, as coisas existem. Dizer que as palavras referem-se somente a outras palavras, e as metáforas a outras metáforas, é um truísmo. É verdade que os dicionários são feitos apenas de palavras; mas ao lado dos dicionários repousam as enciclopédias, cujas palavras referem-se a coisas além da linguagem, a coisas do mundo real. A língua não é um sistema fechado em si mesmo; ela pode entrar em contato com algo que não ela mesma.
Acreditar que as "tiranias" do poder absoluto e da razão analítica sejam iguais é fazer um fetiche das palavras. A razão é acessível a todos, o poder somente a alguns. E aprisionar-se ao discurso é negar a possibilidade de julgamento ético, de uma política fundamentada em qualquer outra coisa que não a força. Não está claro, no espectro de referência escolhido por Coetzee, por que alguém condenaria o totalitarismo -ou o apartheid.
Os teóricos do apartheid, diz-nos ele, lutam por um mundo em que as diferenças sejam mantidas e contra a miscigenação universal que acabaria com elas. Para eles, "o mundo é um palco para um conflito maniqueísta entre o princípio da diferença e o princípio da indiferença". Mas Coetzee informara-nos anteriormente que a sustentação da diferença tem seu lado positivo: a hierarquia evita a guerra, evita o mimetismo que degenera em rivalidade. "É a perda da diferença, isso sim, mais do que a diferença, que leva ao conflito."
O apartheid é uma forma de paranóia, é "louco, doido" e seus promotores "estavam possuídos por demônios"; Coetzee, entretanto, também nos diz que a loucura não deveria se subtrair frente à razão, que é melhor ter-se os demônios acomodados do que ter que expulsá-los. Direitos humanos, igualdade, universalidade -as noções sobre as quais se deve basear a condenação ao apartheid- não têm lugar em tal visão da vida.
Tudo nesse livro leva a crer que Coetzee esteja se defendendo da acusação de não ter escrito uma obra mais engajada politicamente. Sua argumentação consiste em dizer que todo engajamento é vão, porque a luta o torna igual ao adversário. Este argumento está errado. Mas, felizmente, é também desnecessário: a posição de Coetzee enquanto escritor é irrepreensível. O escritor não tem obrigação, enquanto escritor, de se envolver em lutas políticas. Ele já está engajado por meio de seus escritos, pois sua obra ajuda a humanidade a encontrar o sentido da existência, e não há luta maior do que a luta por esse sentido. Todas as verdadeiras obras de arte criam valores, e por isso são políticas.
O poeta não precisa se dedicar a uma causa, nobre ou ignóbil, a fim de cumprir sua missão: ele o faz em sendo um poeta. É por isso, diz-se, que os combatentes judeus no gueto de Varsóvia estavam preocupados em salvar a vida do poeta Berl Katznelson: não porque fosse o soldado mais precioso, mas porque suas palavras poderiam ajudar os sobreviventes a viver melhor. O escritor não é um herói, ele não é melhor nem pior do que o homem comum, mas sua atividade é "sui generis".
E não é necessário, para afirmar essa atividade, ver o bem e o mal como gêmeos. De fato, é necessário que não se faça tal afirmação. Coetzee, o escritor, sabe disso, mas Coetzee, o crítico, ainda não entendeu.

Tradução de Rachel Behar.

Onde encomendar: "Giving Offense: Essays on Censorship" (University of Chicago Press, 289 págs., US$ 24,95), de J. M. Coetzee, pode ser encomendado, em SP, à Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, tel. 011/285-4033) e, no Rio, à Marcabru (r. Marquês de São Vicente, 124, tel 021/294-6396).

Texto Anterior: Sem maniqueísmo na manhã tropical
Próximo Texto: A guerra é a mensagem
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.