São Paulo, domingo, 9 de fevereiro de 1997
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Grupo discute a transformação da América Latina

JORGE CASTAÑEDA

Há poucos dias, aconteceu em Tepoztlán, México, a terceira reunião de um grupo de políticos e acadêmicos latino-americanos que pretendem redefinir os termos de uma alternativa ao atual esquema regional, nos âmbitos econômico, social e político.
Organizado pelo pensador brasileiro Roberto Mangabeira Unger, da Faculdade de Direito da Universidade de Harvard, e pelo autor desta coluna, o grupo já se reunira na Cidade do México e em San José de Costa Rica, com o propósito de construir coincidências entre políticos latino-americanos de centro e de esquerda e acadêmicos de vários matizes ideológicos, e de propor um rumo diferente para as sociedades da região.
Dessa reunião do México começaram a surgir alguns pontos de convergência, tênues porém significativos, em torno de determinados pontos de fundo.
O primeiro deles consiste na lógica da proposta. Diferentemente das esperanças ou dos temores expressos em determinados círculos com relação a uma espécie de reação populista atrasada contra os fracassos das reformas econômicas na região, a intenção do grupo em questão consiste em desenhar uma nova proposta, que seja ao mesmo tempo diferente do esquema atual -o do chamado "consenso de Washington"- e do projeto populista de antes, e também de uma versão social-democrata adocicada ou temperada com consciência social.
Seu sentido consiste justamente no caráter inovador do tema, não na repetição de construções teóricas e políticas já existentes, sejam elas locais ou procedentes da Europa ou da Ásia oriental.
Em primeiro lugar, se discutiu o tema do refinanciamento do Estado latino-americano. Não existe oposição entre uma economia democratizada de mercado e um Estado forte e enriquecido.
Pelo contrário: em um meio social caracterizado por desigualdades extremas e um meio econômico marcado por oligopólios, cartéis e nepotismo, um Estado atuante é uma das condições necessárias ao funcionamento adequado do mercado.
Para conseguir esse refinanciamento de um Estado forte, é preciso descartar as opções tradicionais: a captação de rendas mediante a nacionalização de determinados recursos nacionais ou atividades, o endividamento externo ou o recurso a déficits orçamentários de grande vulto.
Daí decorre que só existe a opção de financiar o Estado por meio de impostos, levando em conta que as cargas tributárias em toda a América Latina são muito inferiores às da Europa, às dos Estados Unidos e às da Ásia oriental.
Mas como a elevação do imposto de renda acarreta todo tipo de inconvenientes e obstáculos, o grupo analisou a possibilidade de taxar mais fortemente o consumo, sobretudo por meio do IVA (imposto sobre valor agregado).
Parte-se de um fato indiscutível: embora os impostos indiretos, como o IVA, sejam os mais retrocessivos, também é fato que os efeitos redistributivos mais notáveis da política fiscal se dão pelo lado do gasto, não da arrecadação.
Assim, os países da Europa ocidental, onde os impostos sobre o consumo, como o IVA, representam uma parte preponderante da arrecadação, têm sociedades muito mais igualitárias que os Estados Unidos, onde não existe um imposto nacional sobre o consumo, onde o imposto de renda é o mais importante e que tem a sociedade mais desigual de todos os países industrializados. A redistribuição se dá pelo lado dos gastos, não da arrecadação.
O segundo ponto de convergência inicial do grupo foi em torno da conhecida idéia dos direitos sociais. Na maioria dos países da América Latina, a educação, a saúde, a habitação, a assistência à infância, uma aposentadoria digna e algum tipo de renda mínima ou inexistem -em determinados graus de qualidade- ou, então, estão intimamente vinculados ao emprego.
Seguiu-se o esquema europeu, o de sociedades que antes gozavam de pleno emprego. A inovação consiste em estabelecer pacotes crescentes de direitos sociais para todos os cidadãos, desvinculados do emprego, financiados com os recursos provenientes da maior carga tributária.
Teriam coberturas universais, mas enfatizando os setores em que seu impacto seria maior: a infância, as mulheres, as famílias chefiadas por mulheres solteiras.
Seriam, também, exigíveis e permanentes, ou seja, não seriam sujeitos a cortes orçamentários. Isso libertaria as empresas de uma parte dos encargos sociais, transferindo-os ao conjunto da sociedade.
O terceiro ponto chave, entretanto, refere-se justamente à insuficiência de qualquer política social compensatória.
Para o amplo grupo de políticos que vem se reunindo desde fevereiro do ano passado, não existe luta eficaz contra a desigualdade que não parta de um combate produtivista e "duro" ao dualismo das economias latino-americanas.
De fato, já há muito tempo -mas sobretudo de maneira recente- as economias da região vêm se cindindo em duas: um setor moderno, orientado ao exterior, competitivo e próspero, mas de dimensões minúsculas no tocante à capacidade de absorção do emprego; e outro dirigido ao mercado interno, de baixa produtividade, mas onde trabalha ou vive a maioria da população.
Sem um esforço deliberado, descentralizado e produtivista, baseado em alianças entre empresa privada, Estado e trabalhadores, será impossível conseguir a incorporação da retaguarda à vanguarda.
Não há dúvida de que, para isso, assim como para conseguir o consenso tributário indispensável para o refinanciamento do Estado, é preciso uma transformação do Estado latino-americano.
O grupo examinou um programa mínimo de democratização da política e do Estado na América Latina. Esse programa inclui a reforma do financiamento das campanhas eleitorais, a reestruturação dos meios de comunicação em massa, a introdução de várias iniciativas cidadãs, tais como referendos e a revogação de mandatos, e uma reforma em matéria de responsabilidade governamental.
Por último, o grupo latino-americano procurou fixar os parâmetros estritamente políticos de sua proposta. Trata-se, em suma, de conseguir mudar as alianças em escala continental. Onde o centro do espectro político aliou-se principalmente à direita nestes últimos anos, seria preciso conseguir que esse centro se deslocasse para a esquerda. Esta última, na maioria dos casos, já sabe que não tem condições de ganhar uma eleição presidencial sozinha, sobretudo agora que em todos os países do continente -excetuando México e Venezuela- prevalece o sistema de dois turnos. E o centro começou a perceber que acaba fazendo a política da direita, já que esta dispõe de aliados internos e externos muito mais poderosos. Há, portanto, atrativos para esta substituição de alianças, que poderiam basear-se em um esboço programático como aquele que foi assinalado.
O grupo que se reuniu abrange políticos que vão desde o ex-presidente brasileiro Itamar Franco até Luis Inácio Lula da Silva, no Brasil.
Nada garante o sucesso de um esforço dessa natureza. Mas o fato de haver comprometido políticos de primeira linha com teses, documentos e uma estratégia de longo prazo, e de poder desenvolver essa tese com imaginação e sem dogmas, já constitui um passo à frente. Ainda faltam muitos outros, mas os primeiros já foram dados.

Tradução de Clara Allain

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