São Paulo, domingo, 9 de fevereiro de 1997
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"Brazilianistas" e "americanistas"

JOSÉ GOLDEMBERG

Após a 2ª Guerra Mundial, os serviços diplomáticos das grandes potências foram complementados por "agências de inteligência", como a CIA americana ou a KGB soviética, cuja função não era apenas a de representação, mas de coleta de informações e análise dos acontecimentos políticos que ocorriam nos países potencialmente inimigos.
Chamar essas atividades de "espionagem" não é bem correto, se bem que, algumas vezes, a CIA e a KGB não só se dedicaram a essas atividades como também armaram grupos de insurgência e promoveram golpes de Estado.
A análise do que ocorria no interior da URSS ou de outros países se tornou extremamente importante, porque era uma forma de prever acontecimentos futuros e, portanto -do ponto de vista dos adversários-, tomar as devidas precauções. Numa época em que imprensa, rádio e televisão difundem uma quantidade extraordinária de informações, o problema não é ter acesso a elas, mas entender o seu significado.
É a falta desse entendimento que leva a surpresas desagradáveis.
O recente episódio da tomada da embaixada japonesa em Lima pelos guerrilheiros do Tupac Amaru mostrou também como as análises de que o movimento anti-Fujimori parecia destroçado estavam erradas.
Estudos analíticos são feitos por intelectuais bem informados; isto é o que faziam os "sovietólogos" nos EUA, enquanto existia a URSS. Quase todas as grandes universidades americanas criaram departamentos para essa finalidade, que influíram muito na formulação das políticas governamentais. O avanço do fundamentalismo islâmico, para o qual o serviço diplomático americano não estava preparado, deu origem, mais recentemente, a inúmeros grupos universitários, que se dedicam agora a esse problema.
As relações entre o Brasil e os EUA têm se ressentido da falta desses estudos, o que, em si, é uma indicação da pouca importância que o nosso vizinho do Norte dá a esta região do globo, muito menos inquietante para ele do que os países da América Central.
É bem verdade que um certo número de "brazilianistas", isto é, americanos especializados em questões do Brasil, surgiu durante o regime militar, alguns tendo mais acesso ao general Golbery do que os próprios pesquisadores brasileiros. Seu trabalho foi, sem dúvida, útil, não só ao governo americano como também à oposição política no Brasil. Após o retorno à democracia, muitos estudos foram feitos pelos "brazilianistas" sobre a ascensão do PT.
Estes exemplos indicam claramente a necessidade de estimular intelectuais brasileiros a estudarem mais os eventos políticos e sociais dos EUA, para prever em que direção este país vai evoluir. Esses "americanistas", trabalhando em universidades brasileiras ou americanas (por exemplo, centros de estudos latino-americanos), poderiam contribuir muito para a formulação de estratégias governamentais (e não-governamentais) de ambos os países.
Estudos desse tipo têm sido feitos, principalmente, na área econômica, devido aos conflitos potenciais entre o Nafta, se estendendo para a América do Sul, e o Mercosul, se estendendo para o Norte.
Há, porém, outras áreas de grande importância, em que prever o futuro poderá ser útil. Por exemplo, se o atual vice-presidente dos EUA, Albert Gore, vencer as eleições presidenciais no ano 2000, que consequências isso terá para a política ambiental americana e seus reflexos na Amazônia?
Outro bom exemplo, da área educacional: num plebiscito recente na Califórnia, foi aprovada proposta proibindo as universidades de destinar quotas a grupos minoritários. O resultado será objeto de decisões judiciais, porque é considerado inconstitucional por certos setores, mas, se mantido, influirá no Brasil, onde foi proposta a destinação de quotas para negros na USP.
Qualquer análise realista das relações Brasil-EUA deve, porém, partir das seguintes premissas:
- o Brasil é a nona economia mundial e importa -e exporta- cerca de US$ 50 bilhões por ano, apesar de representar apenas 3% da renda mundial. Essa significativa inserção internacional significa que precisamos estar atentos ao que se passa nos países para os quais exportamos e dos quais importamos (entre os quais Japão e Europa Ocidental, além dos EUA);
- os EUA representam hoje mais de um quarto de toda a economia mundial e, com o fim da Guerra Fria, exercem uma influência desmesurada, não só na área econômica, mas também na área política e cultural. A comparação com o Império Romano é um pouco exagerada, mas as decisões do Senado americano (como as do Senado romano) têm consequências que ultrapassam as fronteiras do país.
É por essas razões que decifrar o que se passa nos dois países e estudar o futuro de suas relações é uma tarefa inadiável ao nos aproximarmos do terceiro milênio.

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