São Paulo, sexta-feira, 14 de fevereiro de 1997
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Maneiras de ler poesia

LEYLA PERRONE-MOISÉS

um livro discreto e importantíssimo. Discreto, porque se apresenta singelamente como "um conjunto de análises e interpretações de textos poéticos brasileiros". Importantíssimo, porque surge em tempos de aparente carência crítica. Numa época de vale-tudo estético, em que a obra literária se destina à degustação rápida e egotista, em que o ensino da literatura parece algo anacrônico, tendendo a transformar-se em mero apêndice dos "estudos culturais", um grupo de oito universitários se debruça sobre poemas da modernidade brasileira, com amor, vagar e competência. São eles, pela ordem, além do organizador: Alcides Vilaça, Benedito Nunes, Fábio de Souza Andrade, João Luiz Lafetá, Jorge Koshiyama, José Miguel Wisnik e Murilo Marcondes de Moura.
Alguns desses universitários são nomes consagrados da crítica brasileira; outros, mais jovens, são nomes confirmados; e um deles ainda está em suas primeiras provas. A presença dessas três categorias de leitores de poesia já é, por si só, prova de continuidade e promessa de futuro.
O livro pretende ser uma "amostra significativa das diferentes formas de ler uma obra poética". Uma amostra significativa de leituras depende, em grande parte, de uma amostra significativa de textos. Como diziam Pound e Valéry, a escolha é fundamental. A seleção de poemas analisados é, sem dúvida, significativa: Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Murilo Mendes, Jorge de Lima, João Cabral de Melo Neto e Mário Faustino são nomes incontestes da melhor poesia brasileira do século 20.
Os dois nomes restantes surpreendem, um pela não-canonicidade -Caetano Veloso-, outro pela vetustez acadêmica -Raimundo Correia. Já que fui gentilmente solicitada a opinar sobre essas leituras, avanço um julgamento pessoal. A presença de Caetano Veloso nesse conjunto não destoa, a de Raimundo Correia, sim. O soneto "Anoitecer" desafina aí, histórica e esteticamente. Por mais que Bosi se esforce por mostrar as belezas do poema, o leitor de poesia se lembrará, forçosamente, que sobre o referido tema existem coisas bem melhores, de Baudelaire a Pessoa. O próprio fecho do poema "Banzo", de Mário de Andrade, citado na análise, evidencia o convencionalismo do soneto de Raimundo Correia.
Antes de me ater a algumas dessas análises particulares, parece-me importante uma visão geral dessas maneiras de ler e de ensinar a ler poesia. Não há uma linha teórica ou metodológica privilegiada de antemão, mas uma grande abertura de informação e de prática. Um rápido levantamento de nomes citados no volume (que não tem índice onomástico) pode ser ilustrativo. O leque de teóricos e críticos é muito vasto: vai de Croce e Bachelard a Ricoeur e Lacan, passando por Dámaso Alonso, Spitzer, Curtius, Wellek e Warren, Odgen et Richards, Jakobson, Bakhtin, Benjamin, Auerbach, Lukács, Adorno, Horkheimer, Ingarden, Erlich, e muitos outros.
O ensaio inicial de Alfredo Bosi, intitulado "Sobre Alguns Modos de Ler Poesia: Memórias e Reflexões", é um importante balanço dos métodos críticos que contribuíram para a formação dos professores de literatura do final dos anos 50 até os dias de hoje, em especial na Universidade de São Paulo. Dosando sutilmente o relato de sua formação pessoal com a reflexão sobre as teorias poéticas desse período, Alfredo Bosi demonstra várias coisas: primeiro, que um bom leitor de poesia não nasce feito, mas se forma; segundo, que o ensino da literatura na USP ofereceu, nesses 40 anos, a possibilidade de se conhecerem todas as principais teorias poéticas do século 20 e a liberdade de combiná-las de modo pessoal.
O ensaio de Alfredo Bosi confirma o que já sabemos a partir de seus livros, obras de referência obrigatória da cultura brasileira. Bosi é um mestre no manuseio de um vasto repertório de leituras, que percorre com a desenvoltura e a despretensão que caracterizam aqueles que possuem um real saber. É bastante ilustrativo quanto à sua honestidade intelectual o fato de que ele tenha refletido com isenção sobre tendências que não abraçou pessoalmente. Assim, a análise que faz dos impasses do estruturalismo francês não o impede de reconhecer que este movimento não foi em toda parte um mero modismo, e que sua superação se iniciou na obra dos mesmos estruturalistas, e não por efeito de uma crítica exterior.
Bosi é também um mestre estilista, dono de uma escrita clara e cristalina em que irrompem, discretos, mas mordentes, numerosos traços de humor e ironia. Esse ensaio introdutor é ao mesmo tempo um precioso documento de história cultural e um deleite, pela fineza das observações, até mesmo daquelas com que o leitor possa não concordar.
Não tendo aqui espaço para comentar todas as leituras de poemas, destacarei algumas que me parecem especialmente felizes. A leitura de poemas de "Paulicéia Desvairada", por João Luiz Lafetá, é levada a efeito com uma sensibilidade e segurança que nos fazem lamentar ainda mais o desaparecimento recente do crítico. Contestando, de modo elegante, as leituras feitas por Roberto Schwarz e Luiz Costa Lima, que cada um à sua maneira viu os "defeitos" desse primeiro Mário de Andrade, Lafetá mostra que a tensão entre o "eu" do poeta e a cidade, entre o subjetivismo e o objetivismo não se poderia resolver harmoniosamente em benefício de um ou de outro, ou em equilíbrio de ambos, mas é constitutiva do tema e da fatura do livro.
Inspirando-se nas considerações de Krystyna Pomorska sobre o eu lírico do acmeísmo russo (movimento contemporâneo ao nosso modernismo), Lafetá mostra que há uma perfeita simbiose entre o eu e a cidade. As rupturas de tom não se devem a um subjetivismo excessivo do poeta, mas do confronto do poeta com essa cidade ela mesma em transformação, em fragmentação, em desvario. "Apesar de marcada pela subjetividade, a linguagem do poema mantém grande concretude", nas referências ao real da cidade, tanto um real topológico (ruas, casas comerciais etc.) quanto um real da linguagem coloquial daquele momento.
Assim, em suas tensões e dissonâncias, "Paulicéia Desvairada" comprova o que o próprio Mário disse num texto de 1924: "Muitas vezes o defeito é uma circunstância de beleza". O desafio enfrentado pelo poeta era unir "a notação objetiva dos aspectos da cidade moderna com o tumulto de sensações do homem moderno"; ora, "o fato de ter tentado forjar essa modernidade da representação foi o lance feliz de Mário de Andrade: nesse instante, e retomando agora a frase de Adorno, um momento histórico fez-se essencial em sua obra".
A leitura de João Cabral por Alcides Vilaça se baseia numa reflexão densa e rigorosa sobre a poesia em geral e o projeto particular do poeta. Como no caso da análise de Mário de Andrade por Lafetá, essa reflexão necessita da análise de mais de um poema, para mostrar constantes e para comprovar a abrangência da leitura defendida. Vilaça é particularmente feliz na demonstração da relação entre a forma de João Cabral e a ética que a anima: "A precisão da linguagem de Cabral é conforme a valores éticos básicos, que lhe dão propriedade expansiva ao mesmo tempo em que determinam seus limites. É uma ética da afirmação do elementar sobre o compósito, do limpo sobre o sujo, do analítico sobre o sintético, do ordenado sobre o caótico, do deduzido sobre o especulado". Essas categorias criam "uma espécie de traduzibilidade geral" entre os poemas, que permitem um diálogo entre vários lugares, entre várias artes, entre vários ofícios, entre vários ritos. É essa "traduzibilidade" que Vilaça demonstra de modo eficiente.
Gostaria, porém, de ver melhor explicitados alguns ataques a "uma leitura estritamente formalista de João Cabral". A não ser como descrição puramente fônica, gramatical ou retórica, que leitura de João Cabral, ou de qualquer poesia, poderia ser "estritamente formalista"?
Benedito Nunes, leitor de Mário Faustino, está, a meu ver, na categoria "hors-concours". Um fino crítico como é Benedito Nunes, lendo um poema belíssimo como "Juventude" de Mário Faustino é algo que coloca a poesia e a crítica brasileiras no seu mais alto patamar. O crítico se desincumbe da difícil tarefa de mostrar a particularidade de um poema cujo tema não poderia ser mais geral: amor e morte, tempo e eternidade. Ao mesmo tempo que usa, discretamente, seu vasto arsenal filosófico, procede a uma leitura musical do poema, ressaltando sua "avassaladora sonoridade", seu "efeito encantatório" por iteração, paronomásia e ritmo ondulatório. O poema de Mário Faustino se revela, assim, como próximo da essência da poesia lírica: "ação celebratória" ou, no conceito de Valéry, desenvolvimento de uma exclamação face à maravilha de haver mundo e vida.
A leitura da canção "Cajuína", de Caetano Veloso, por José Miguel Wisnik tem a riqueza que só um crítico dublê de músico poderia oferecer. Wisnik analisa, ao mesmo tempo, a letra e a linha melódica da canção. Os "rendilhados sintáticos e sonoros típicos do cantador popular, sua rítmica, sua melódica, sua instrumentação" sustentam uma indagação filosófica fundamental e complexa. Os diagramas em que Wisnik nos mostra a colocação das palavras na frase musical lembram visualmente essa arte da renda, artesanato tradicional do Nordeste. Interpretando a obra como "uma canção sobre o dom e sobre a falta", ou "troca de dons na falta", o crítico mostra como os significados e os processos poéticos da letra (anagramatização, ritmo, acentuação), são otimizados pela melodia e pelo próprio canto de Caetano.
A pergunta metafísica da canção -"existirmos, a que será que se destina?"- é confrontada com as indagações de Heidegger, de Wittgenstein e da psicanálise, sem que se sinta nesse confronto nenhum pedantismo acadêmico. A fusão erudito-popular, que existe nessa como em outras canções de Caetano, se realiza na leitura com a mesma "naturalidade". A aproximação final com a pergunta do Miguilim de Guimarães Rosa -"Mãe, mas por que é, então, para que é que acontece tudo?"- nos leva a duas verificações: que as grandes perguntas dos artistas são as mesmas dos filósofos e que, como nos dois casos citados, a arte brasileira dá suas melhores respostas na fusão da tradição com a inovação, do regional com o universal.
Esse conjunto de textos críticos demonstra que há uma tradição uspiana de leitura de poesia. Mesmo que os críticos deste volume não sejam todos da USP, a coordenação de Alfredo Bosi supõe certas afinidades. Essa tradição não se caracteriza pela uniformidade teórica ou metodológica, mas pela seriedade no manejo do instrumental crítico, pela ausência de interpretações arbitrárias. É por esse amor e esse respeito ao texto poético que, na dedicatória do volume à memória de João Luiz Lafetá, este é caracterizado simplesmente como "leitor de poesia". Pode haver maior honra e prazer?

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