São Paulo, sexta-feira, 14 de fevereiro de 1997
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Piadas, casos e fofocas

MICHAEL HALL

durante anos, Gore Vidal afirmou que nunca escreveria um livro de memórias. Pensando bem, essa idéia não era má.
O livro, entretanto, é divertido, embora consista basicamente em piadas, fofocas e casos reciclados de outros livros do autor. Mesmo assim, dois dos livros que mais sofrem deste autoplágio não estão traduzidos para o português ("Two Sisters" e "Screening History"), e há uma certa quantidade de material novo. Entre as melhores histórias novas, há a visita de Lady Astor, excêntrica deputada do Parlamento britânico, a Moscou, quando perguntou a Stálin: "Marechal, quando o senhor vai parar de matar gente?". Resposta: "Lady Astor, as classes indesejáveis não se auto-aniquilam". Também não lembro de já haver lido que JFK comeu a cunhada, ou que Jacqueline retribuiu dormindo com Robert Kennedy. As histórias de Garbo, que gostava de se vestir com roupas de Vidal, também são boas.
Várias das histórias aguentam mais uma vez essa repetição. A mais engraçada, certamente, é de como Vidal, na tentativa de dar algum sentido para o roteiro do filme "Ben-Hur", incluiu a sugestão de um romance entre os personagens de Charlton Heston e Stephen Boyd. Está de volta a apresentação do bordel masculino, dirigido por um amigo de Proust, já visitado em vários romances de Vidal. Há mais detalhes sobre a noite, aparentemente inesquecível, passada na cama com Jack Kerouac. Temas conhecidos reaparecem: como os diretores de cinema não são "auteurs", como Ana‹s Nin mente nos seus diários, como "homossexual" é adjetivo (com referência a atos) e não substantivo (categorizando pessoas).
De fato, "Palimpsesto" coloca uma questão interessante: quanto precisamos saber sobre as vidas de autores cujos livros gostamos? Quer saber o que Gore Vidal faz na cama? Então, este é o livro para você. (Resposta resumida: não muito, mas com milhares de parceiros.) Seriam necessários detalhes do grande (e único) amor da vida do autor, um breve caso adolescente? (O amado morreu na Segunda Guerra.) Certamente, Vidal poderia ter poupado seus leitores das longas citações dos livros de memórias de outros, elogiando sua beleza, charme e (sem brincadeira!) excelência como anfitrião.
Quem acha Vidal bem mais interessante como ensaísta político e cultural do que narrador da vida sexual dos ricos e famosos vai gostar sobretudo do relato de uma visita à família Kennedy, em agosto de 1961. Baseado em anotações feitas na ocasião, Vidal acrescenta comentários acerbos sobre a ingenuidade de suas próprias avaliações políticas, na época. A certa altura, a renúncia de Jânio Quadros entrou na conversa. JFK estava irritado com as referências veladas de Jânio a pressões norte-americanas contra ele: "Isto está totalmente errado. Se há um lugar onde jogamos...ah...limpo, foi no Brasil. O empréstimo. Lisonjeando ele. Nenhuma reclamação sobre sua política externa. Agora ele faz isso e vai haver uma ditadura militar". Comenta Vidal: "Jack franziu a testa".
A irresponsabilidade da editora brasileira no modo como publicou este livro é flagrante. A Rocco decidiu eliminar os índices, reproduzir mal as fotografias, e contratar um tradutor que massacrou o texto. Alguns dos erros são tão idiotas que chegam a ser engraçados. Por exemplo: para ilustrar o espírito humorístico de um amigo, Vidal descreve uma festa em que alguém chamou os garotos de programa de "anjos em disfarce". A frase é da Bíblia, mas de qual livro? Há uma sugestão do Livro dos Hebreus. Alguém vai verificar e volta dizendo, "não acho o Livro dos Hebreus". Responde o amigo: "É por que você tem a edição do Racquet Club". O tradutor resolveu identificar o Racquet Club, bastião conservador da burguesia protestante, notório por excluir judeus, puxando uma nota de rodapé: "um club gay"!
Ou ainda este. A atriz Betty Furness, famosa na televisão norte-americana nos anos 50, conduziu um discreto caso no camarim do estúdio onde também trabalhava Vidal. Quando ela terminou o romance, o ex-parceiro enviou um presente, descrito por nosso tradutor como "um par de lindos testículos de cristal". Eram, certamente, bolas de cristal, mas o tradutor é ainda menos sutil que o namorado rejeitado. (Aliás, como será que o tradutor imagina "lindos testículos de cristal"?)
Infelizmente, os erros nem sempre são tão extravagantes. O tradutor acha que "Dutch" quer dizer "alemão", e não "holandês". Descreve o coitado de Tony Perkins como "cheio de cacoetes", quando a palavra usada por Vidal é "quirky", isto é, "excêntrico" ou "imprevisível". Não estamos, afinal, num terreno que exija laureados em Prêmio Nobel de tradução. O pior acontece quando a incompetência do tradutor destrói totalmente o sentido do texto. É engraçado saber de uma conversa entre Vidal, J.K. Galbraith e Arthur Schlesinger para decidir quem iria pedir a Kennedy para parar de dizer "between you and I", um lapso gramatical alarmante (deve ser "between you and me"). O tradutor resolve isto com a seguinte frase sem sentido: "qual de nós diria a Jack para parar de dizer 'aqui entre nós' ". Em suma, uma das piores traduções que já li.
E por tudo isso, a Rocco extorque R$ 42,75. A edição norte-americana, de capa dura, custa US$ 27,50. Custo Brasil ou simplesmente ganância?

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