São Paulo, segunda-feira, 17 de fevereiro de 1997
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Diferenças não ameaçam relação comercial com EUA

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
DE WASHINGTON

O embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Paulo Tarso Flecha de Lima, acha que confrontos sobre temas específicos de comércio, como os que têm marcado a recente relação entre os dois países, são naturais e não devem ser superdimensionados.
Cita como exemplos os diversos conflitos entre EUA e Japão e EUA e Canadá, "típicos de países grandes aliados".
Em meio ao intenso tiroteio verbal entre autoridades brasileiras e norte-americanas nas últimas semanas, Flecha de Lima, 64, quase totalmente recuperado de derrame cerebral sofrido em agosto de 1995, tentou acalmar os ânimos em entrevista exclusiva à Folha na quinta-feira, em seu escritório em Washington. A seguir, os principais trechos:
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Folha - Parece que no Brasil existe preocupação sobre os destinos da relação comercial entre Brasil e EUA. Como o sr. interpreta as atuais dificuldades?
Paulo Tarso Flecha de Lima - Eu encaro isso com naturalidade e tenho me esforçado para tentar arrefecer o calor de certas declarações em conversas com os meus interlocutores norte-americanos.
Uma relação tão diversificada quanto a de EUA e Brasil comporta diferenças de percepção e atitudes às vezes não coincidentes. Mas isso não é algo que comprometa o relacionamento entre os dois países, que vai muito bem, a julgar pelas sucessivas demonstrações de confiança mútua que se pode perceber da parte dos governos e dos Congressos de ambos os países.
Folha - Mas existem alguns pontos específicos em que os problemas são inegáveis e parecem ser de difícil solução. Qual a saída, por exemplo, para a situação criada pelo pedido dos EUA de investigação pela OMC (Organização Mundial do Comércio) do regime automotivo brasileiro?
Flecha de Lima - Bom, essa foi uma decisão infeliz do governo dos EUA. Não foi um gesto muito agradável. É como quando há uma briga de vizinhos e um dos vizinhos se aborrece e chama a polícia.
Acho que isso poderia ter sido evitado, principalmente porque não há nenhum interesse norte-americano importante postergado. Ao contrário. As empresas automobilísticas norte-americanas estabelecidas no Brasil estão muito satisfeitas, e as duas que se queixaram também estão investindo no Brasil dentro do atual regime.
Ou seja: elas reconhecem que o nosso mercado é mais importante do que certas percepções burocráticas que não devem ser invocadas neste caso.
Folha - Mas como se resolve?
Flecha de Lima - Nós vamos ter a consulta no dia 21, em Genebra (na OMC). Essa consulta é que vai definir qual o curso desse problema. Eu espero que a gente consiga desarmar esse assunto porque os dois reclamantes, a Navistar e a Honda North America, já estão se instalando, uma no Rio Grande do Sul, a outra em São Paulo. Eles próprios disseram a mim que têm todo o interesse no mercado brasileiro. A Honda me explicou que a sua posição se devia ao desejo de fazer com que as autoridades norte-americanas percebessem que ela é uma entidade separada da Honda do Japão e quer ser considerada como empresa norte-americana, não japonesa.
Folha - Elas podem, então, simplesmente retirar o pedido?
Flecha de Lima - Não. Não é como crime de ação pública no Brasil, não. Mas em função da consulta, a parte norte-americana pode se considerar satisfeita com os nossos esclarecimentos, o que sinceramente espero que ocorra e se encerre esse irritante contencioso.
Folha - E o outro lado? O Brasil tem tentado há algum tempo pelo menos diminuir um pouco as barreiras que existem aqui nos EUA à importação de seus produtos, em especial aço e suco de laranja. Como é que vão os entendimentos para que isso aconteça?
Flecha de Lima - Em matéria de aço, nós tivemos aqui em outubro um grupo de trabalho que examinou os procedimentos aplicados em matéria de "antidumping". Havia se estabelecido um acordo de cavalheiros para que se solucionassem algumas questões pendentes. Enquanto isso, não se introduziriam novas ações "antidumping".
Lamentavelmente, já tivemos pelo menos um caso, depois do acordo, de ação "antidumping", que não leva em conta as peculiaridades da economia brasileira.
O nosso ponto de discussão é muito centrado em torno da metodologia do cálculo de preços internos no Brasil. Essa metodologia tinha erros graves porque não dava conta da correção monetária e do ambiente inflacionário que existia no país.
Essa situação precisa ser corrigida rapidamente, e nós estamos atuando para isso.
Folha - E suco de laranja?
Flecha de Lima - Esse é um assunto que me preocupa muito porque nas negociações para o Nafta (mercado comum entre EUA, Canadá e México), os EUA deram uma concessão importante na área de suco de laranja para o México, cuja participação no mercado norte-americano está crescendo.
É um assunto muito complexo, que esbarra aqui nos EUA em interesses políticos muito poderosos, que podem ser medidos pela importância que o presidente (Bill Clinton) atribuiu aos votos eleitorais da Flórida na recente eleição presidencial.
Em todo o caso, acho que temos que persistir porque somos altamente competitivos e não criamos problemas para a produção local, devido à diferença de estações do ano. Nosso produto é vendido aqui na baixa estação de produção norte-americana. Com isso, ajudamos a manter o consumo de suco de laranja no país durante todo o ano, o que é bom também para o produtor da Flórida.
Folha - Os presidentes Fernando Henrique Cardoso e Bill Clinton vão discutir esses temas durante seu encontro no Brasil em maio?
Flecha de Lima - Eu acho que não. Os presidentes poderão refletir sobre assuntos em que haja grandes pressões domésticas e que tenham dimensão suficiente para atrair suas atenções. Não é que esses assuntos não sejam importantes. Mas, por causa de sua especificidade, são melhor conduzidos pelos canais normais de diálogo entre os dois países.
Eles vão trocar idéias sobre Alca (Área de Livre Comércio das Américas), situação do comércio mundial, assuntos de economia, liquidez internacional.
Folha - O presidente Clinton vai estar no Brasil um pouco antes da reunião de ministros de Belo Horizonte (para discutir a Alca). O sr. acha que a presença dele no país às vésperas da reunião pode ter alguma influência nas deliberações?
Flecha de Lima - Nós esperamos que nas reuniões preparatórias que faltam, no Rio de Janeiro e Recife, se consiga avançar na redação do documento final, de modo que quando os ministros chegarem a Belo Horizonte já encontrem um documento amadurecido para que possam debater.
A visita do presidente Clinton poderá dramatizar o efeito da Alca, mas não necessariamente mudar posições.
Folha - As divergências entre Brasil e EUA sobre a construção da Alca estão sendo superadas?
Flecha de Lima - A realidade joga a nosso favor. Quando nós insistíamos na estratégia dos "building blocks" (formação de blocos), sabíamos que seria impossível concluir negociações de país com país no prazo que se pretende para a Alca começar a funcionar. São 34 países. Quando você trabalha sobre os "building blocks", você já tem grupos de países com afinidades, intercâmbio entre si, que podem prosseguir e construir algo mais amplo.
Folha - O sr. acha que no final das contas os EUA vão acabar aceitando essa teoria?
Flecha de Lima - Não quero dizer isso, não. Mas eu acho que nós devemos insistir nessa teoria até porque uma experiência como a do Mercosul não se pode ignorar.
Folha - Têm corrido rumores no Brasil de que a viagem do presidente Clinton ao Brasil marcaria o fim de sua missão aqui. O que o sr. diz sobre isso?
Flecha de Lima - Quem pode determinar o encerramento de minha missão é o presidente Fernando Henrique e dele só tenho recebido expressões de encorajamento. Enquanto eu estiver servindo bem a Sua Excelência e a saúde me permitir, não vejo por que encerrar minha missão aqui.
Folha - E como vai a saúde?
Flecha de Lima - Estou trabalhando como nunca. Estou quebrando até recordes. Ontem, por exemplo, fui a dois jantares.

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