São Paulo, sábado, 22 de fevereiro de 1997
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Obra guarda descompasso

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

"O Assassinato de Bebê Martê" sobrevive pela ambiguidade. Por mais atento que seja, o leitor ficará em dúvida quanto a um ou outro detalhe do enredo criado por Elvira Vigna numa narrativa curta, montada sobre sugestões -e esse é o maior mérito da autora.
Abstraindo sua ordem cronológica, uma mulher de meia-idade (a narradora) intercala eventos relacionados a duas festas, uma no presente da narração e outra no passado. Em torno de cada uma ocorre pelo menos um assassinato. Vigna lança iscas, atiça a curiosidade, constrói hipóteses ambíguas, mas os detalhes de tais mortes ficam por conta da imaginação do leitor.
A entrelaçar os eventos está a personagem Lúcia, também cinquentona e amiga da narradora. Ela participa das duas festas, de suas consequências e se envolve diretamente nos crimes, inclusive como vítima.
Sua existência, em contraponto com a própria narradora, permite a Elvira Vigna explorar tematicamente as vicissitudes femininas da meia-idade, as transformações impostas pelo tempo e pelo espaço cambiante, ao longo de quatro décadas, ao corpo e à alma, por assim dizer, de uma mulher no mínimo ambiciosa.
A capacidade de retratar o universo mental de mulheres que, embora emotivamente atadas a homens que nem sempre amam, fazem questão de coordenar seus destinos, eis, então, o segundo pilar da obra.
Além dele, registre-se a capacidade da autora de expor sem máscaras a sordidez -nada ambígua- que muitas vezes alimenta as relações entre as pessoas, mesmo em momentos os mais delicados, mesmo entre amigos ou familiares.
Dois aspectos, porém, limitam o encanto potencialmente enorme do livro.
Em primeiro lugar, abusa-se do "flashback", transformado em recurso de aplicação quase gratuita. Tem-se a impressão, muitas vezes, de que, após escrever de modo linear o que tinha em mente, a autora picotou o texto e, com a ajuda do computador, redistribuiu pedaços aleatoriamente. Não se faz sentir uma lógica narrativa própria que imponha tal ou qual ordem ou rememoração.
Tal fragilidade leva, em suma, a que sutilezas da narrativa não encontrem eco no automatismo da linguagem. E esse descompasso, entre forma e conteúdo, acaba por fazer de "O Assassinato..." um livro que cai bem mas fica devendo algo ao leitor.

Livro: O Assassinato de Bebê Martê
Autora: Elvira Vigna
Lançamento: Companhia das Letras
Quanto: R$ 17 (124 págs.)

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