São Paulo, terça-feira, 25 de fevereiro de 1997
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Vagabundagem universitária começa no trote

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Todo começo de ano é a mesma cena: calouros de universidades, as cabeças raspadas e as caras pintadas, incitados ou obrigados por veteranos, ocupam os sinais de trânsito pedindo dinheiro aos motoristas. É uma das formas do chamado "trote", o mais artificial dos ritos de iniciação da mais artificial das instituições sociais contemporâneas -a universidade.
O trote nada mais é do que o retrato da alienação em que vivem esses adolescentes das classes favorecidas. Com tempo de sobra, eles não têm em que empregar tanta liberdade.
Ou querem dizer que essas simples caras pintadas têm qualquer simbologia semelhante à das máscaras de dança das tribos primitivas estudadas por Lévi-Strauss?
Para aquelas tribos índias, as máscaras eram o atestado da onipresença do sobrenatural e da pujança dos mitos. Mas esses adolescentes urbanos não têm tanta complexidade. Movido a MTV e shopping centers, o espírito deles vive nas trevas. A ausência de conhecimento e saber limita-lhes os desejos e as atitudes.
Em tempos mais admiráveis, ou em sociedades mais ideais, essa massa de vagabundos estaria ajudando a cortar cana nos campos, envolvidos com a reforma agrária, em programas de assistência social nas favelas ou com crianças de rua, ou mesmo explorando os sertões e as florestas do país, como faziam os estudantes do extinto projeto Rondon.
Hoje, mais do que nunca, há uma tendência -característica da mentalidade das elites da economia capitalista- de adulação à adolescência, de excessivo prolongamento da mesma e de excessiva indulgência para com esse período tido como "de intensos processos conflituosos e persistentes esforços de auto-afirmação".
Desde adolescente, sempre olhei com desprezo esse tratamento que se pretende dar à adolescência (ou pelo menos à certa camada social adolescente): um cuidado especial, semelhante ao que se dá às mulheres grávidas. Pois é exatamente esse pisar em ovos da sociedade que acaba por transformar a adolescência num grande vazio, numa gravidez do nada, numa angustiante fase de absorção dos valores sociais e de integração social.
Se os adolescentes se ocupassem mais, sofreriam menos -ou pelo menos amadureceriam de verdade, solidários, ocupados com o sofrimento real dos outros.
Mas não, ficam vagabundando pelos semáforos das cidades, catando moedas para festas e outras leviandades. E, o que é pior, sentindo-se deuses por terem conseguido decorar um punhado de fórmulas e datas e resumos de livros que os fizeram passar no teste para entrar na universidade.
A mim -que trabalhava e estudava ao mesmo tempo desde os 15 anos- causava alarme o espírito de vagabundagem que, cultuado na adolescência, vi prolongar-se na realidade alienada de uma universidade pública.
Na Universidade de São Paulo, onde estudei, os filhos dos ricos ainda passam anos na hibernação adolescente sustentada pelo dinheiro público.

E-mail mfelinto@uol.com.br

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