São Paulo, sexta-feira, 28 de fevereiro de 1997
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'Três Vidas' só oferece Marcello Mastroianni

MARCELO REZENDE
DA REPORTAGEM LOCAL

"Três Vidas e Uma Só Morte", do diretor chileno radicado na França Raul Ruiz, chega aos cinemas oferecendo uma curiosidade mórbida: foi um dos últimos trabalhos do ator Marcello Mastroianni, morto em dezembro do ano passado.
Temos então, em um primeiro momento, que nos desvencilhar de uma tarefa. Assistir os últimos gestos de um ator mítico que chegava aos 70 anos, o corpo já um pouco curvado -uma denúncia da velhice-, repetindo de maneira exaustiva o papel de amante incomum de várias mulheres.
Obrigação cumprida, podemos finalmente olhar para o cinema de Ruiz e tudo que ele pretende. E não é exatamente pouco.
Conselheiro para "assuntos cinematográficos" do governo Allende, Raul Ruiz deixou seu país após o golpe militar nos anos 70, chegando a Paris para cumprir o destino de parte dos exilados latino-americanos do período.
Enfrenta a crise e a saudade provocada pela distância (materializadas no filme "Diálogo de Exilados", de 1974), entende que o mundo de onde veio existe apenas em suas lembranças e termina por abraçar a cultura que, momentos antes, ainda era estrangeira.
Ruiz, entre tantas escolhas, preferiu o surrealismo. E, na verdade, o que "Três Vidas" evidencia é que ele é um dos poucos que podem ainda assumir essa fantástica doutrina -mais do que uma escola estética- do delírio, da construção do universo onírico e da liberdade sem parecer um pouco ridículo.
Mais do que uma história, seu filme conta uma série de acontecimentos. De início, um homem encontra um desconhecido que lhe avisa ser o marido desaparecido de sua atual mulher.
Fala do momento em que a abandonou por culpa de fadas que moravam em seu velho apartamento, do dia em que envelheceu décadas nas horas de uma noite de sono ou, ainda, como conseguiu parar o tempo. Depois desse conto, a narrativa se desdobra em muitas outras.
Um professor de Sorbonne, martirizado pela mãe doente e milionária, abandona tudo e se torna um mendigo.
Após um incidente nas ruas conhece uma prostituta com quem decide morar. Descobre que ela é uma rica industrial atraída por perversões sexuais, uma foragida ameaçada de morte por um homem que abandonou.
Essa é uma amostra dos fatos notáveis apresentados em "Três Vidas". Outros virão, seguindo o mesmo esquema. Uma conturbada história de amor tendo como cenário uma situação que é a mais pura fantasia.
O grande talento de Ruiz é conseguir dar conta, visualmente, dessa sua terra de sonhos. Sua habilidade com as cores, os enquadramentos ou efeitos é espantosa.
Por instantes consegue fazer do espectador um participante de sua vertigem, de seus mais delirantes desejos.
Mas há algo em seu trabalho que derrota o seu talento formal. Ao contrário do espanhol Luis Buñuel -que se tornou uma espécie de paradigma para o "cinema surrealista"-, Ruiz não converte uma ácida visão da moral burguesa em ironia. Ou mesmo humor.
Seu ataque não funciona porque recusa o divertimento. Tudo é cerebral, cartesiano demais para quem pretende o desvario. Sobram apenas as belas imagens. E, claro, Mastroianni.

Filme: Três Vidas e Uma Só Morte
Produção: França, 1996
Direção: Raul Ruiz
Com: Marcello Mastroianni, Melvil Poupaud, Chiara Mastroianni
Quando: a partir de hoje nos cines West Plaza, Liberty, Belas Artes - sala Carmen Miranda e circuito

LEIA MAIS sobre estréias de cinema às páginas 4-1 e 4-3.

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